A Casa do Gaiato abriu as portas aos três primeiros garotos, na primeira semana de Janeiro de mil novecentos e quarenta, e consta do livro de registos, terem feito ali cura de repouso, até ao fim do ano, quarenta e dois deles. Não é um estranho que se apresenta; é um filho que chega à casa paterna. Nunca se anuncia aos que estão, o nome do garoto que há-de vir amanhã, para não arder Tróia; basta que eles o saibam na hora da chegada. Vão todos em algazarra infernal, esperá-lo ao fundo da quinta. O garoto é medido com os olhos, fuzilado com perguntas, apertado de todos os lados, por todos, e finalmente, carreado em triunfo, até à sala de jantar. Não há melhor sala no mundo, para receber garotos assim, do que a de jantar.
A sopa vai servir-se. A chilreada continua até às orações da noite. A Casa está em festa: chegou uma vítima inocente das tuas prodigalidades. Até que vem a hora da cama de lençóis lavados, que o pequenino vê e goza pela primeira vez.
[...] Às vezes não é o garoto das ruas de Coimbra, mas sim o pequeno vadio das feiras, que se apresenta.
Vem afeito a dormir nos palheiros. É robusto, sabido, tisnado do tempo; e num instante declina a sua identidade: «Sou filho das tristes ervas, tenho andado ao Deus dará».
Não há, à primeira vista, aquela afectividade escaldante que costuma haver, quando chega o catraio de Coimbra; mas é de pouca dura o tempo das cerimónias. Daí a nada entendem-se; são irmãos.
Se batemos o torrão na soleira do tugúrio, ao tomar o garoto nos braços para o transplantar ao sol, é unicamente para sacudir a terra má, que não o pequenino; a ele, queremo-lo tal qual é, para ser outro, dentro de breve tempo.
O Rapaz não sobe de posto, por ser da Casa do Gaiato; melhora de situação. Veio das classes pobres, continua a ser e a viver pobre.
PAI AMÉRICO, Obra da Rua, 5ª ed., 2012 pg 39-41