BEIRE

Um flash de lágrimas…

— (...) Elas choram como um menino! Passei agora por lá. Digo que é para dar os bons dias e ver se está tudo bem. Mas a verdade é bem mais do que isso. Passo pelos pavilhões dos doentes, porque este meu ritual diário é para me reabastecer das energias de que irei precisar durante o dia. — Como é que tu aguentas isso tudo, com essa idade e sempre bem disposto?! -, perguntam-me. A resposta que muitas vezes dou é o clássico quem corre por gosto não cansa. Porque nem sempre se pode (talvez nem deva...) falar dos segredos de um culto, um cultivo e/ou uma cultura dessa coisa estanha a que, comummente, se chama vida interior. É que o grande segredo de tantos milagres que Deus faz, passa por aí. Daí aquela dúvida pertinente: Quem faz o milagre é Deus, fazendo a vontade de um Ser Humano ou é um Ser Humano que arrisca pôr-se ao Serviço de Deus para, na pessoa de um irmão em necessidade, fazer nele o que é a vontade de Deus?!...

Passei agora por lá. Sem mais introduções, a Isabel, manca que manca, vem a correr para mim. É aquela heroína que resistiu ao saque SS do dia 07 de Novembro, fugindo ao comprimido para acalmar (Ver O GAIATO, 1949, de 24.11.18). — Tás a ber, se eu não fugia, já vistes?!... Toda tortinha, com um abraço atrofiado e dobrado sobre si mesmo, a Isabel, que já completou os 64 anos, ainda é uma criança traquinas. Ora com um encanto que enternece a gente, ora brava como as cobras. Pior que um gato assanhado. Às vezes é mesmo uma chaga viva onde quer que viva. Conforme a faixa em que está a girar aquele disco no momento, ela mais parece um catavento - tão depressa é uma menina doce e cativadora como, de repente, solta lá as suas cismas e birrices, que nem sempre é fácil de aturar. Quando a vejo correr para mim, se for preciso a meio da missa ou já na fila da comunhão, para me manter calminho como Deus manda, recorro à doce memória de D. Margarida e sorrio: — São estes os filhos que Deus nos mandou!

Contra o que lhe é habitual, hoje a Isabel não se pendurou em mim para dar um beijinho, emoldurado sempre por uma risadinha nervosa entre um invariável refrão — encontos e desencontos, ahahaha! Coisa que, na boquita dela nem sei bem o que quererá dizer. Entendo-o como uma sábia introdução àquele indispensável beijinho, todo pendurado em mim e todo arranhante, por causa da barba que os distúrbios de um hirsutismo precoce desencadearam nela. Hoje, não há beijinho de enconto e desenconto. Hoje há uma cara sizuda, de senho carregado: — Olha lá, dr Abélio, quando é que elas vêm?! Nós temos saudades. Esta casa assim vazia faz-nos chorar a todas. Se lá 'as oitras' me vierem buscar outra vez, eu atiro-me daqui abaixo, já sabes. A minha casa é aqui. Desata a chorar e a praguejar que elas não tem nada que vir aqui buscar ninguém.

Paro-me com a Luísinha, enroscadinha na sua cadeira de rodas, a fazer e desfazer um novelo de trapos. Tristita, a chamar pela Carmo. Era 'a mãe' que sempre cuidava dela. — Sabes uma coisa, dr Abélio? A Lala foi lá ver a Carmo e as oitras, a Alice; ah, e a Bela e a Rosa. Ela disse que elas choram como um menino, tás a ver?!. Não querem estar lá. Querem vir para o Calvário. Quando vais buscá-las?!...

Ai o que todos nós somos capazes de fazer uns aos outros! Cheios de mil razões. Realmente, nestas coisas de apoio social, se nos falta a Caridade, logo entra a tirania da ajuda. Pintada de sol+i+dar+i+edade... Mas já sem SOL nenhum. A arrefecer
tudo.

Um admirador