BEIRE — Flash's

Flash's do quotidiano...

1 — Brinca-se até com os nomes… Porque «o bom humor nos afasta do doutor», sinto-me um apaixonado aprendiz de brincar… Detesto o estereotipado «estava só a brincar» — que mais aborrece que alegra. Mas, sempre que uma oportunidade se me oferece, tento brincar com esta nossa gente. Não com a doença, mas com os doentes…. Cujos nomes também podem servir para tal. No caso da Deolinda, não perco oportunidade — Deolinda, a linda de Deus… Quando me cruzo com ela, logo percebo se anda do lado de cá ou se, por ausências que já lhe são frequentes, anda pelos lados de lá — sob o peso de histórias duras de roer. Tantas e tais como as que a maioria dos nossos doentes carrega em seus ombros fragilizados…

Se nos cruzamos e ela anda pel'o lado de cá, a Deolinda, ao ver-me, muito delicadamente, saúda-me e trata-me por "senhor engenheiro"... E, sempre com a mesma delicadeza, logo aproveita para pedir o grande favor de me levar à minha casa… Preciso muito ir lá buscar um casaco que… Ou para ver o meu irmão que… Ou para falar com o meu marido que… E é aí que eu, tentando desconectá-la de alguma obsessão que começa a atacar, brinco com ela: Deolinda — a linda de Deus!...

Como teimoso aprendiz de vivente e nato admirador de Sófocles, gosto de ruminar aquela sua de que «há muitas maravilhas neste mundo, mas a maior de todas é o ser-humano»(1). Este meu vir parar aqui, por força de muitas circunstâncias que me ultrapassam, tem o sabor de uma bênção muito especial — para um filho por Deus amado. Nesta minha paixão pelas «psicologias do comportamento e afins», tento cuidar bem dos écrans da minha mente. E, assim, ver a Deolinda e quantos aqui nos estão confiados, para além das aparências — como Deus mesmo os vê. Só por esse ângulo de visão, posso comtemplar a bondade que ainda vive ali em cada um. Sei que «a alma é sempre perfeita», mesmo quando vive num corpo privado das condições para se poder manifestar como Deus manda.

Mas esta nossa Deolindaé mesmo um tratado. Só visto! Que contado não mete graça — dizia-se lá pelas bandas onde fui nado e criado… Há dias, um vizinho veio vê-la. Prova de que era uma senhora que sabia fazer-se respeitar e estimar. Constato que receber uma visita, para ela como para tantos outros mais, é uma lufada de ar fresco. Parecem outros — renovados. Como que deixam o lado de lá e, gostosamente, voltam até ao lado de cá. Por pouco tempo, é certo, mas voltam...

Quase apetece mendigar aos nossos leitores que se treinem na arte de visitar(2) esta gente e apareçam. Mesmo que só para «ver com os olhos do coração» e dar um bocadinho de seu tempo para estar com estes nossos mais que tudo… Sempre na linha da revelação da grande psicoterapeuta e poetisa Virgínia Satir: «A maior dádivaque concebo poder oferecer a alguém é…»(3)

2 — Um rebuçado, sff… Mas quero do Dr. Bayard Chegado de fora, arrumo o carro. Porque o portão, já automatizado, demora a fechar-se, vejo a Deolinda a correr para o portão — a ver se… Como já lhe conhecemos bem este tique, corro também e…

— É só para ir ali comprar um rebuçado. Deixe-me ir lá, senhor engenheiro, faça-me esse grande favor!...

Era a hora de subir para a missa e Pe. Telmo, à porta da Casa Mãe, catava horizontes a ver se via braço a que agarrar-se para subir os catorze degraus que nos levam à nossa emblemática Capela Espigueiro...

São catorze caleiras! Já as contei todas! explica ele… Fico dividido entre o acudir a um ou a outro. Reparo que o tal vizinho — visita sua — me dava sinal de que tinha tudo sob controlo:

D. Deolinda, agora espere aqui um bocadinho. Eu vou lá e compro-lhe um rebuçado

Mas olhe que é um rebuçado Dr. Bayard…

Deolinda, já com o rebuçado na boca, sobe connosco para a capela. Cada um para o seu lugar habitual — como qualquer animal de hábitos… Sorrateiramente, como quem já vai para o altar, Pe. Telmo chega ao pé da Deolinda e pede-lhe um rebuçado… De olhos esbugalhados, ela finge que não tem. Pe. Telmo diz-lhe que viu que… e que… Como quem engana uma criança, Deolinda mete a mão ao bolso e saca o papel do rebuçado que já tinha na boca… Pe. Telmo, sempre fiel à sua vocação de guia das almas perdidas, bota um sermãozinho de moral sobre o dar e o receber… Vencida, de novo a Deolinda mete a mão ao bolso e, muito a custo, dá-lhe um rebuçado…

Pe. Telmo, rindo, afaga o rebuçado, louva o gesto e, logo de seguida, sempre sorrindo, devolve-lhe o rebuçado recebido. Qual criança gulosa, Deolinda bota-lhe a mão e desfaz-se toda numa cara linda de alegria que, agora, já só tem quando a vida lhe corre ao gosto dos sentidos

Deus louvado. Porque isto é que é o nosso Calvário…

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1 Penso que agora Sófocles diria «humanizando»… Isto é, «nascido para tornar(-se) pessoa — um ser-criador-de-relações vitalizantes»…

2 Falo de "arte de visitar" porque, nisto como em muito mais, só ajuda quem não estorva. Uma visita, pelo seu não saber estar, pode tornar-se non grata

3 Vale a pena saborear o poema: «A maior dádiva que concebo poder receber de alguém é // Ser vista, ser ouvida, ser tocada, ser compreendida, ser reconhecida, // (…) // A maior dádiva que concebo poder oferecer a alguém é // Ver, ouvir, tocar // Compreender, reconhecer // (…)». Aprender ISTO tem sido o meu programa de vida…

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]