BEIRE

A Utopia do Calvário / C. do G. de Beire (cont.)

AS "UTOPIAS" DE PAI AMÉRICO. N'O GAIATO nº 1910, de 10.06.17, tentamos aclarar a diferença entre "utopias que dão mais Vida à vida" e muitas outras utopias que roubam toda a Vida à já tão pobre vida de um pobre quotidiano sem sonhos. Depois de falar das Utopias de Jesus de Nazaré, abri portas às Utopias de Pai Américo e prometi falar-vos delas hoje. Já conhecemos a história dessa "martelada" que, definitivamente, curou Pai Américo de uma certa "miopia mental" que o não deixava ver claro os caminhos que Deus queria que trilhasse. Para, mediado pela sua entrega à grande Causa do Reino, libertar Seus filhos desprotegidos. A começar pelos mais desprezados, pelos mais pobres. Presos, crianças abandonadas, entregues à rua, sem eira nem beira. Num mundo que não conhecia os valores do alto. E aí, Pai Américo começa a vislumbrar que uma Obra da Rua, nas suas múltiplas valências, poderia ter o seu papel peculiar na construção do Reino dos Céus...

Já falámos do Último Sonho de Pai Américo (ver os nos 1888 a 1891 d'O GAIATO). Chegou a hora de, através do que escreveu e do que deixou gravado em fita magnética que guardamos religiosamente, auscultar o que terá sido esse seu mundo interior em que a "verdade do amanhã" o arrastava. Qualquer coisa como essas "saudades do futuro" de que falam os poetas e os místicos. Porque também Pai Américo, como S. João Evangelista, acreditava que "aquilo que somos, ainda não aconteceu". E mais: acreditava que "o Filho do Carpinteiro de Nazaré" o chamava a ele, um filho de gente do campo, para que ISSO pudesse ir acontecendo. Naquela porção de espaço e naquela porção de tempo que lhe iam sendo confiados. Para que a Obra da Rua pudesse sair da utopia (do não-lugar) ao milagre do ex+(s)istir. Que então começou e ainda está acontecendo...

HÁ "MARTELADAS" QUE DÃO VIDA. Como grande artista da palavra que cedo se revelou, os escritos de Pai Américo sobejam de imagens que nos falam do seu jeito de dizer o indizível. Já todos nós experimentamos uma ou outra "martelada" que nos deixou azoratados. A ver o que tardávamos em ver. E depois... Tudo passa pela (in)fidelidade à luz que se nos abre. Como quem busca novas luzes que lhe indiquem o caminho a seguir, Pai Américo, mesmo sem saber ainda o que fazer, arranca por caminhos não andados que esperam por alguém. Fazendo lembrar os jovens do Maio de 68, nas paredes da Universidade de Paris - Sorbonne: - Não sabemos ainda o que que queremos, mas já sabemos o que não queremos. Ao vê-lo entrar num convento, os amigos assustam-se e tentam demovê-lo. Resposta dele, agradecida, mas firme: - Deixai ser feliz quem pensa que o é... São as respostas da Fé a quem fala outra linguagem que não a desse jeito original de encarar o mundo e a vida. Respostas de quem, frente ao precipício, em vez de se deixar cair, escolhe o voar, porque sente as asas a nascer-lhe por dentro... Respostas de quem vê que a utopia (o não-lugar) precisa tornar-se eu+topia - um lugar onde o BEM (do grego eu...) possa tornar-se a boa nova da chegada de um "recoveiro dos pobres"...

VIVER EM PRO+CESSO DE TORNAR(-SE)... Abriu os olhos para começar a "ver" o que ainda mais ninguém via: crianças da rua - a maior escola de malfeitores. À luz dessa sua utopia, acredita que dali, da rua, também se podem fazer portugueses de lei... De experiência em experiência, de Tui ao Porto, onde não encontra "estalagem" para tanto sonho que traz dentro, bate às portas do Seminário de Coimbra. Aí encontra um Bispo que, se não percebe ainda bem de utopias, como que acredita que delas pode nascer o novo. Diz sim a esse "peregrino" que ali busca a luz. E logo, na sua ordenação de diácono, tudo começa a aclarar-se. Dentro e fora dele, com a ajuda dos seus "superiores", em quem via os "representantes de Deus" para o ajudar.

É aí que se atira de cabeça, fazendo um "voto de pobreza", pela entrega de todos os seus haveres para uma mútua sacerdotal... "Ninguém se atira à água sem saber nadar. (...). Mas, primeiro, há que despir-se", dirá ele mais tarde, referindo-se a esse momento. E, como Francisco de Assis, pobre como Job, entregou-se totalmente ao serviço e descoberta de sempre novos caminhos na construção da PAZ - que já entende como repor a justiça junto daqueles a quem tinha sido negado o direito de viver de cabeça erguida. Com a d'IGNI+dade dos "filhos Deus".

Nas ruas de Coimbra, tacteando pela sopa dos pobres, visita aos presos, apoio à pobreza envergonhada e colónias de férias para os garotos da rua, (...) começa a vislumbrar que deverá tomar novos rumos até encontrar "um sentido" que lhe preenchesse aquele excesso de Vida que o remexia por dentro. A partir daí vinculou a sua vida aos últimos - em seus diferentes extractos sociais. Não para dominá-los ou aproveitar-se deles... Mas para fazer deles o que ainda ninguém tinha feito: gente com vida. Gente feliz. A espirrar esperança. - Ele me ajudou a tornar-me pessoa, ouço eu da boca de muitos.

Um admirador