BEIRE

Filhos órfãos de pais vivos

INTIMIDADES DEVASSADAS. No café, em mesa ao lado da minha, está uma mãe jovem. Tem ao lado um filho de aproximadamente 10 anos. Ela está ao telemóvel e parece um pouco alterada. Fala alto e sem grande sentido do que seja a intimidade familiar. Percebe-se-lhe o teor da conversa. Tinha sido chamada à escola devido ao mau comportamento do filho. Telefonava para o pai do rapaz, separado da mãe, a viver em Lisboa. Percebi que ela o acusava e responsabilizava pelo mau comportamento do filho na escola. Aos berros, ela vai retorquindo que ele não tem autoridade nenhuma para a acusar de nada, porque se tinha descartado do filho; tinha ido à vida dele sem qualquer preocupação pelo rapaz e ela é que o tinha criado sozinha com toda a responsabilidade que isso implica. Seguiu-se uma troca mútua de imprecações que se ouviam em todo o café. Com termos duros em que, às tantas, todos são uns bandidos...

    O rapaz estava ali, a ouvir tudo. Caladito, envergonhado, como quem brinca, com o seu telemóvel. Por vezes, até me parecia rir-se por dentro. Como quem assiste a uma cena que já lhe é familiar. Às tantas, a mãe sobe ainda mais o tom de voz, levanta-se e vai para fora do café, a modos de falar mais à vontade. O rapaz levantou-se também e seguiu a mãe. Pareceu-me que não queria perder o fio da conversa. Passado um bocado entraram novamente. Ela foi ao balcão pagar e saíram os dois num silêncio de cortar à faca. Entretanto, pedi a minha conta. Empregado e eu olhamo-nos e, mais por gestos que por palavras, dissemos ao mesmo tempo "que vidas!..." Comentamos o desnorte desta conversa na frente do miúdo que serviu ali de mote para toda a descarga da raiva que ainda (des)une estes pais.


HISTÓRIAS DE CASAS DO GAIATO. Vim a remoer o futuro destes miúdos. Revivi histórias de miúdos que conheci nas Casas do Gaiato - daqui e/ou de África. Histórias de outros jovens que acompanhei - porque, sem perceberem muito bem como, foram apanhados nas malhas da toxicodependência. Histórias de homens e mulheres que hoje andam empurrados pela vida - sem rumo certo. Com filhos sacudidos de adopção para adopção. A sentir-se um peso na família. Própria ou emprestada. Um joguete, um estorvo, uns bandidos - como chegou a ser dito.

    Compreendo melhor a queixa insensata de quem acusa tudo e todos porque eu não pedi a ninguém para nascer... Como se isso fosse possível a alguém. Sei que são formas banais de dizer que não se sentiram amados/as nem protegidos/as por aqueles que os colocaram cá. E o ter um bode expiatório não cura mas alivia...

    Deixei-me sentir a dor daquela mulher jovem, mal amada, ferida, sempre num enxovalho. A apontar o dedo e sempre na mira de dedos que se lhe apontam. Frustrada nos seus sonhos de um amor para durar. Mas em que nada passou de uma ilusão. Como se, para ela, a vida fosse um destino triste. Fiz minha a dor destes miúdos usados como bolas de ping-pong pelos pais - sem saber a quem pertencem. Lembrei o Tonito, de oito anos, numa escola da Foz: - Ó professora, ninguém me quer. Já tive três pais e agora não tenho nenhum. Ninguém me quer, professora!...

    Desacreditei-me de psicologias da treta, sociologias e outras políticas sociais de gabinete. Pregam muito, mas não fazem nada. Porque, sem misericórdia, toda a ciência ética vira tirania. Debruço-me então sobre a Boa Nova do evangelho. Que, em boa verdade, só agora começo a DES+cobrir. Cada vez mais encantado. A sonhar com mais revolucionários pacíficos. Como Pai Américo e a Obra da Rua. Seu contemporâneo irlandês, o P.e Flanagan (1886-1948) que, nos EUA criou a Cidade dos Rapazes. Também ele sacerdote católico, que dedicou toda a sua vida à educação de crianças e jovens delinquentes e abandonados. Enterneço-me com um Gandhi, um Abbé Pierre, um Jean Vanier. Paro-me com Luther King, porque também Eu tenho um Sonho... Ou, já no nosso tempo, Nelson Mandela e Madre Teresa de Calcutá. E tantos/as apaixonados/as por esse inquietante, mas ainda inacabado Projecto Humanizador do Pai que continua a fazer do Carpinteiro de Nazaré o ideal de tantas vidas que arrancam à triste sorte estas crianças e estas mães. É tempo de SER esperança...

Um admirador