BEIRE - Flash's
Do "pão nosso de cada dia"...
Sei que há leitores que gostam de textos pequeninos - P.e Telmo à frente. Eu também gosto de textos pequeninos. Lembro que todo eu vibrava na leitura de Pai Américo. Aquele seu jeito de dizer tanto em tão pouco! Uma pena de ouro - quot verba tot sentencia, aprendi eu no latim: em cada palavra um esguicho de sabedoria! Mas Pai Américo não escreveu só textos pequeninos. Porque O Gaiato é para todos - os que gostam de textos pequeninos e os que, com a ajuda deste pequenino/grande Jornal, gostam de per+furar a realidade que nos habita a todos, com especificidades em cada um.
Então, hoje, vou tentar três textos pequeninos...
1 - Dois pombinhos no Calvário... Quase me arrastava pela mão - venha cá ver!... Ainda não eram as 7:00h de Domingo - dia em que o despertar é só às 8:00h. Eu levanto cedo por causa das hortas. Ela levanta cedo por causa da outra... Para não me enervar com aquele berreiro todo... Vou com ela. Leva-me até ao palácio dos faisões. Abre a porta, vai a um balde grande que tem uma rede por cima - espreite aí...
No fundo do balde, dois pombinhos juvenis, a esvoaçar e a chiar, de biquinho aberto. Lembrei os bebés quando acordam e ficam ali a ver a vida crescer... De repente, ouvem a porta do quarto e adivinham a mãe a tirar o peito, porque está na hora da mamadinha... Tudo muda - mãozinhas e pezinhos numa festa... Amostra milho partido miudinho e exemplifica: - Sento-me ali, pego em cada um e vou metendo pelo bico abaixo... Olhe este papinho cheio... Depois, pega numa caneca que traz, com água limpa... - Tá a ber: bebo um bocadinho, meto o bico deles na minha boca, e eles mnhe... mnhe... mnhe...
Na sua deficiência, já em idade outra, está feliz com esta sua maternidade tardia... Explica: - Foi P.e Alfredo que mos deu. Mandou limpar as caleiras e eles estavam lá...
Quem souber ler que leia. Isto, que é do 'pão nosso de cada dia', não cabe em nenhuma ERPI da vulgaridade das obras semelhantes. Não cabe. Mas é o encanto deste nosso Calvário - palavra tirada do Evangelho.
2 - Este é o vosso avô, P.e Telmo!... Pedem-me para chegar à estação de Paredes, a buscar um antigo gaiato de Malanje - o Arnaldo. Que vinha visitar o P.e Telmo. Peço o n.° do tlm, por se acaso... Não foi preciso. Chego, olho e, pela cor da pele e linguagem corporal - É o Arnaldo? Ao sim esperado, e já tudo em família, aproxima-se. Aponta para um canto - as malas, a esposa e três filhotes. Tudo bem arrumado no Nissan de serviço, depressa chegamos a casa. Mal paro o carro e aponto as portas para ir ter com P.e Telmo, já o Paulo Sérgio estende a mão pela janela do carro adentro. Cumprimenta à sua maneira: - Traz alguma coisa para mim?!... Você como se chama? Eu sou Paulo Sérgio. Você onde mora? Eu sou da Vila da Feira. Pode levar-me lá para eu ver? Depressa o Arnaldo se apercebeu d'a família que tinha diante...
Uma vez saídos do carro, os filhotes inquirem: - É esta a nossa casa nova?!... Chega o nosso Adão, que já os esperava. - Fui eu que te recebi. Eras pequenino... Resolvida esta primeira etapa, chegamos junto de P.e Telmo que, sentadinho no sofá, aguardava a visita surpresa. Um beijo de pai / filho que se reencontram, depois de muitos anos: - Esta é a minha esposa.... - Este é o vosso avô, P.e Telmo. Brinquei: - Este é o vosso tio, Adão...
Compreendo aquele inspector da judiciária que, inquirindo-me aquando da embrulhada contra P.e Baptista, deixou sair esta: - ... Ele fala de que 'somos uma família'... Mas isso, para nós, não diz nada... Pudera. Para perceber isto 'duma família para os sem família' é preciso ou ter sentido isso na pele (caso do Arnaldo) ou com+viver um tempo qb1 numa Casa do Gaiato ou aqui n'O Calvário. Com+viver! De olhos do coração bem arregalados, como as criancinhas - para não deixar perder pitada.
3 - ... e com direito a refilar!... Ainda dentro do carro, a festa da conversa era para a plateia que a saudava. «Já mobília da casa», aquela voluntária, resiliente aos ventos da mudança, nunca nos deixou. Sempre que precisamos... - Hoje, venho só para 'passar férias', e 'com direito a refilar'...
Ouvi a conversa, aproximei-me a cumprimentar e entrei na brincadeira. Confidenciou: - Estava em casa sozinha e... Senti-me mal: dei comigo a pensar que podiam precisar de mim... Um belo momento de família, à maneira d'O Calvário de antes.
Ela foi-se e eu fiquei. A ruminar aquele «...e com direito a refilar», mais aquela confidência... Encontrei n'isto um sabor novo. Descobri que o refilar, muitas vezes, não passa de um jogo de relação - pobre, sim, mas uma relação qb, para quem não tem melhor. E aí saltou-me a velha história do 'ensinar o porco a cantar"... Fiquei-me no final da história: - «Penso que só conseguiríamos perder tempo e irritar o porco"...
Dentro de mim, ouço os ecos daquele encontro inesperado. Pego no tlm e deixo sair este sms: «Fiquei a pensar em si, em mim, n'O Calvário. Já tenho tema para uma crónica... Realmente, nós humanos, não nos conformamos com uma felicidade de 'animal farto'... Atente a esses 'ataques' e ausculte o seu significado...»
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1 - Qb - quêbê!... Uma abreviatura para dizer 'quanto baste'...
Um admirador