BEIRE - Flash's
Os nossos "rituais" d/no Calvário
Lembro P.e Manuel. Olho P.e Telmo, olho-me a mim, os doentes e os rapazes. De comum, isto: a) temos áreas em que, com a idade, as manifestações do crescendo das limitações se vão tornando evidentes...b) temos outras áreas em que esse crescendo parece ser retardado por quaisquer 'forças invisíveis'... Sobretudo durante a celebração da Eucaristia e/ou na reza das Horas Litúrgicas, na reza do terço, muitas vezes, me apanho distraído a pensar no discurso d'a raposa ao Principezinho - de Exupéry: - «... Os rituais são precisos», ed. Caravela, pg. 70.
Estes fenómenos observados aqui n'O Calvário merecem uma crónica. Somos uma experiência de humanização ainda não muito estudada. No dizer de P.e Baptista, "isto aqui, não é uma simples escola - é uma verdadeira universidade". Oh, se é! Mas uma universidade sem 'docentes' e 'discentes' que gostem de aprender e saibam ensinar1.
1 Rituais de 'sabor religioso'... Tento observar e observar-me - com olhos de ver. Cada um, no seu «eu e as minhas circunstâncias», tem os seus ritmos e o seu jeito de ser/estar no mundo. Logo me dou conta de que também cada um, consoante o peso do seu tempo aoristo2 (um passado com peso emocional), tem os seus rituais peculiares. De sabor religioso, cultural, busca de sentir-se útil, capaz de amar e fazer-se amar - enfim, a vida em pro+cesso.
Mas há um fenómeno que me dá que pensar. Nas pessoas mais condicionadas pela sua religião, os rituais de 'sabor religioso' têm um peso que não aparece nas outras pessoas. Tal como o peso de outros rituais sociais, não religiosos, aparece com tónicas diferentes de pessoa para pessoa.
Em P.e Manuel a coisa era patente: ao proclamar o Evangelho, quando concelebrava a Eucaristia, que já não conseguia celebrar sozinho, bem como ao rezar connosco o terço e/ou a Liturgia das Horas, era como se a sua cabecinha ainda estivesse perfeita. Lia, e/ou rezava com aquela alma inflamada que sempre lhe conhecemos. Ele era um apaixonado pela sua vocação de Padre da Rua! Fora destas áreas, de dia para dia, notava-se o acentuado crescendo das limitações próprias da idade e doença.
Olho-me a mim, olho P.e Telmo (uma vida de total entrega aos outros...), D. Laura (cantora e catequista), D. Maria e D. Deolinda (também cantoras na igreja...). D. Adelaide (que foi 'a mãe' nesta Casa), Sr. Costa, D. Julieta, ... Cada um carregando diferentes histórias de cariz mais social e/ou cultural, com alguma ligação aos rituais de 'sabor religioso'. Reparo: Ai como tudo isso pesa na sua 'qualidade de vida' aqui no Calvário!
Dói-me ver o crime que é 'encaixotar' as pessoas numa ERPI (mesmo que lhe chamem 'Casa Sacerdotal'), se os deixamos ali, de rabinho seco e papinho cheio, mas já excluídos dos 'rituais do seu quotidiano'. Lembro P.e Abraão, ao fim de 19 anos de ERPI: - «... é triste a gente querer falar e já não se lembrar das palavras.»
2 Os cestos da roupa suja e lixo... Mais minuto menos minuto, nunca juntos, mas pelas 9h aí vêm eles. Cada um no seu ritmo e seu jeitinho de ser «pessoas com deficiência». A Tinita, em ritmado cerimonial de para/arranca // arranca/para, arrasta o saco da roupa suja até à lavandaria. E ai se lhe tiram esse serviço à comunidade! O Valdemar, feliz e cioso do seu papel. Julgávamo-lo incapaz de qualquer serviço útil. Verdade que, com os 'beijinhos' e 'acção formativa' de D. Rosa, também ele já engrenou. Ao sinal da 'mãe', pega no saco e lá vai ele, sozinho e direitinho - lixo e/ou roupa suja ao lugar certo.
Frente a estes quadros do nosso quotidiano, quem é que, assim sem mais, vem negar o obra de doentes, para doentes, pelos doentes?! Por uma lei do Estado que, em matéria de 'acção social', proíbe os 'residentes' de «prestar serviços que são da competência do pessoal auxiliar»?!... Ouço Pai Américo: «O homem, naturalmente, gosta de dar-se. Comunicar-se. Ser útil. O homem só, é um doente. Não ama. Explora». Ah 'criminosos de boa fé'!...
3 O 'falso saber' destruidor... Os romanos falavam da burrice do «tomar a nuvem por Juno...». E diziam que «quando o sábio aponta a lua, o imbecil olha para o dedo...» Agora, lá porque houve alguém que possa ter abusado obrigando a trabalhar, logo soltam os cães a ladrar o aqui d'el rei porque «não se pode pedir trabalho a estes doentes» - privando-os da resposta a esta sua necessidade básica - sentir-se útil...
Não há dúvida de que a ignorância gera petulância... O intolerante age e fala como se Deus falasse a ele e só a ele, encarregando-o de ir missionar os outros...
__________________________________
1 - Gosto da ideia de que «o amor é um fenómeno humano complexo que não pode ser ensinado, mas pode aprender-se». Dito do amor, pode também dizer-se da acção social e da tão propalada humanização dos serviços...
2 - Repito-me: Tempo aoristo é esse tempo do passado que, pela intensidade com que tocou a nossa sensibilidade, deixou em nós marcas que condicionam o nosso presente - com sabores de delícia e/ou de amargura...
Um admirador