BEIRE - Flash's
1. No horrores da guerra. Fazia um ano sobre o rebentar desta guerra que a todos ameaça. A comunicação social tenta fazer-nos um balanço dos horrores perpetrados. Apresenta dados e imagens. Algumas delas capazes de fazer chorar as pedras…
Na mira de me humanizar, quanto é dado à minha visceral fraqueza, tento aquele mínimo de informação sobre estes tristes atos do homem(1). Um homem ainda por humanizar naquele mínimo indispensável à com+vivência — nestas nossas diferenças de ser e de pensar.
Vejo imagens, ouço comentários e deixo-me a remoer a dita oração da serenidade que tanto me tem valido. Aprendi-a como um texto de Tagore — sem ter lá a invocação do «dai-me, Senhor». Depois ouvi dizer que não é dele, mas de S. Francisco. Bom. Lembro a Imitação de Cristo: não olhes a quem diz, mas ao que se diz…
Aquando da morte da Isaurinha, tinha-a em todo o lado, num poster, com uma figura de Cristo em atitude de ruminação interior. Chega um amigo, que gosta de se dizer ateu, vê, deixa-se tocar e exclama: — Que bonito! É pena ter ali o «Senhor" e a figura de Cristo. Servia para todos… Quero saber respeitar. Certo é que me agarro a ela, em muitas circunstâncias. Ei-la, na minha versão habitual: — Contigo, Abba, eu quero aprender a serenidade necessária para saber aceitar aquilo que eu não posso mudar; — Contigo, Abba, eu quero aprender a coragem necessária para mudar aquilo que eu posso mudar; — Contigo, Abba, eu quero ir conquistando aquela sabedoria q.b. que me permita distinguir bem uma coisa da outra.
De mim para mim, neste mundo de acusações mútuas, digo-me que é fácil sacudir a água do capote, com desculpas de mau pagador — em que também sou perito…
2. Sozinha, junto à cruz!… Naquele rolar de imagens e comentários, pró Ucrânia ou pró Rússia, de repente, um abanão na minha sensibilidade: uma mulher, já de meia idade, ali no meio daqueles destroços, avança como quem sabe aonde vai… Ao vê-la assim sozinha, no meio dos escombros, os paparazzi das intimidades da guerra querem saber o que se passa. Sem parar nem olhar para as câmaras, dispara:
— Com estes ataques contínuos, os meus fugiram todos. Mas eu tenho um filho com deficiência… Por palavras, ela não diz mais nada. Segue o seu caminho. Como quem cumpre uma missão. Como quem aceita que o seu realizar-se, o seu cumprir-se mãe é por esse caminho. Seja qual for a cruz que a espera.
Não lhe apanhei ares de desespero nem sequer uma palavra contra ninguém. Era como que a voz silenciosa de uma consciência tranquila, profundamente enraizada n'o seu Ser. A voz de quem sabe em quem acredita. Porque é mãe. E o filho, com deficiência, só pode contar com ela. Por isso avança segura. Na fé de que a sua cruz a levará até à luz… Não recua. Na certeza de que, se morrer, morre no seu posto. Cumprindo-se como mulher e mãe — de um filho com deficiência…
Foi como se toda a reportagem acabasse ali. E vi-me no Calvário. No meio das guerricas d'a Lei da Segurança Social e um legado profético de Pai Américo, que dá pelo nome de Obra da Rua. A tentarmos aprender a ser pai /mãe d'estes filhos que Deus nos manda. Carregados com deficiências tais que os privam de todas as nossas falsas autonomias. Um grito lancinante a dizer ao mundo que ainda há muita gente que precisa de gente. Mais de gente que de leis…
3. Obrigado, querida ucraniana. Pelo testemunho que deste ao mundo — se ele ainda tiver olhos para te ver e ouvidos para te ouvir. Soubeste ser mãe. Mesmo no meio de uma guerra que te/nos rouba tudo o que é de roubar. Mas não rouba os valores eternos de um coração que traz dentro um filho com deficiência.
Esse teu "tenho um filho com deficiência", dito assim, frente às armas que não te respeitam, é uma página do Evangelho — vieram os ventos e as tempestades, mas a casa não ruiu…
Tu, aí, feita mãe/pai (abba!…) — de sangue e de coração. Nós aqui no Calvário. Queremos aprender contigo. A confiar assim. A arriscar assim — na loucura desta beleza, cheia de ambiguidades. Com esperanças de vida e ameaças de morte… "Porque a Segurança Social (eles dizem a Lei!…) obriga a que… e que… e que… Penso no nascer/revelar d'a Lei; penso n'a Lei e n'os Profetas… E no que aconteceu quando os profetas se calaram e ou foram calados pela força bruta d'aquela Lei… E volto sempre ao meu velho sonho desde que entrei aqui — aprender a navegar entre as vagas deste mar revolto. Sem desistir do sonho de nos fazermos instrutores uns dos outros. Na arte de beber da mesma fonte — o respeito pela d'IGNIdade do homem. Do homem integral.
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1 — Lembro bem ter estudado, na filosofia antiga, a distinção entre atos humanos, atos desumanos e atos do homem… Assim: um ato humano é aquele que tende a humanizar o homem — p.e. este escrever como quem reza tende a ajudar a tornarmo-nos mais e mais humanos; a guerra imposta sem hipótese de recusa é um ato desumano e desumanizador; o reagir a uma agressão é uma ato do homem, tal como de um animal qualquer. Depois… é que tudo se decide — agir humanizando ou desumanizando…
Um admirador