BEIRE — Flash's
Calvário — Ensaios para "ver a Deus"…
1 — …Quando rezo, Deus respira em mim… Estou no carro, à sombra, para fugir ao calor. E tentar passar pelas brasas — é depois do almoço… Carlitos anda por perto, atarefado, em solilóquios constantes, na busca de uma folha, um graveto, um papel amarrotado — pra levar ó contentor… É a sina dele. "Para que se possa revelar a glória de Deus" (Jo 9, 3) naqueles que buscam descobrir como tornar-se para ele "um Deus que tenha pele"… Para ele e para todos os Carlitos do mundo que pedem um Calvário e não têm quem lho reparta… (Is 5, 13).
Dois grandes cedros e um rincão de japoneiras emolduram o tanque do homem. Dentro dele, os peixes, em seu imparável voltear, brilham e rebrilham sob a ação dos reflexos do sol. Sobre a copa das japoneiras e já a trepar cedros acima, os chuchuzeiros espreguiçam-se deliciados ao sol. Aqui e além, lá do alto, já pingam chuchus que dá gosto contemplar. Nascem desta amorosa reciprocidade com o nosso trabalho. Neles eu vejo a oração da terra agradecida pelas bênçãos que traz no ventre — quando fecundado pelas mãos do homem…
Fecho os olhos e ouço a respiração em seu ritmo próprio. Distinto do ritmo cardíaco — que também tento ouvir/sentir. Tomo consciência de que não estão sincronizados. Cada um tem o seu jeito próprio de estar ao serviço da mesma vida. Ambos entretecem o seu desenrolar-se. Nem um nem outro dependem de mim. Mas posso influir sobre eles — para acelerar e/ou serenar… Em colaboração com o Deus da Vida que me dotou deste poder escolhê-l'O e/ou rejeitá-l'O. Razão tem o Papa Francisco — "Quando rezo, Deus respira em mim". Dou-me conta de que também eu posso fazer que isso seja mesmo verdade…
Dou graças pela doce experiência. Recordo Pai Américo — «experiências não se transmitem». Mas podem partilhar-se. E, naquele dia, àquela hora, a experiência vivenciada ficou-me gravada — para eu ruminar…
2 — A ouvir uma "música de Deus"… O tanque do homem está mesmo aqui na minha frente. Da boca do homem que lhe dá o nome,a água escorre em bica. Certinha. Delicio-me com aquela música do gluc gluc glogc pungc1. Com todas as possíveis variações, dentro do mesmo tema…
Salta-me o tema voluntários — a bênção que é tê-los connosco e a falta que nos fazem quando escasseiam (ou ainda não2 sabem estar-comnosco…). Saboreio a bênção de os termos. E sonho caminhos não andados que esperam por alguém… Numa arte impossível de ensinar, mas passível de se aprender. Tal como o amor é. Aliás, os dois não sabem viver separados. Sob pena de falsidade — no amor e/ou no voluntariado. Como qualquer moeda, formam díade — cara e coroa. De um depende o outro, numa reciprocidade que não dá para explicar. É preciso entrar-se-lhe na pele.
E, mais uma vez, salta-me também a Florbela Espanca com seu tão celebrado «que pena não haver manicómios para o coração, porque para a cabeça já há muitos»… Sei que experiências não se transmitem mas, no assisado dizer da Etologia Humana3, a repetição atempada de um comportamento pode alargar em nós os nossos horizontes de ser — no SER. E é da minha experiência, aqui no Calvário, o quanto me transformou o dar de comer, o limpar, o cuidar um Faneca, um Diamantino, um Valdemar, … Como se diz entre nós, a princípio estranha-se mas, com o tempo, o amor a esta causa entranha-se… Requer é muita autovigilância para evitar o buenismo — sempre doentio…
3 — Um Crucificado em lenta Ressurreição… Este ano, a Festa da Exaltação de Sta. Cruz tocou-me particularmente — a história desta Festa, a descoberta do Brasil (Terras de Sta Cruz…), as celebrações da Liturgia Romana, o Calvário. E, porque me tocou, fui-me deixando embeber da sua beleza — mesmo que me digam que "isso é muito subjetivo"… Pois é, mas é o meu su(b)jeito a espraiar-se para vós — em doce comUNIão…
Centro-me nalgumas afirmações veiculadas pela Liturgia das Horas que, aqui no Calvário, vamos criando o hábito de rezar em comUM, com a Igreja de todos, todos, todos… Destaco esta: «Pela árvore da cruz veio a alegria ao mundo inteiro"; … Vou buscar coisas que partilhei convosco. De novo penso nessa «tanta gente a sofrer porque procura nesta terra o que só podemos encontrar para além das estrelas!...» Tás a ver, Florbela?!.. O nosso coração vive preso na terra, mas só fora dela encontra alimento capaz…Por isso repito: «Temos aqui um bom manicómio para esses males do coração que tanto afligem a sociedade atual — uma sociedade carecida de um sentido para a vida». Uma vida com amor à Vida. Onde possa ver-se o milagre a acontecer — os crucificados a ressuscitarem… Mas é preciso vir aqui. Ver com os olhos do coração. Ouvir cada doente.
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1 — Acho que foi mesmo uma sorte ter aprendido a ouvir os Sons das Natureza como "essa música de Deus que nos livra de enlouquecer"…
2 — O ainda não tem-me sido um amigo de peito… Um alerta para o facto de que, se não sei, ainda estou a tempo de aprender. Para isso é que estou aqui...
3 — A Etologia é o estudo do comportamento animal. Mas porque o homem, sendo também animal, não se reduz a isso, a Etologia Humana aparece como uma achega importante para as Ciências do Homem — em que gosto de meter também a Filosofia e a Teologia…
Um admirador
[Escreve segundo o acordo ortográfico]