BEIRE

Revestidos da Sua Bondade...

1. Um «barbudo desgrenhado»… Quando me apanho mais atento à vida (essa que circula dentro de mim e ao meu redor), topo que ela gosta de me ensinar o inesperado. Assim foi ontem. Saía do parque subterrâneo e entrava na Pr. Carlos Alberto, no Porto. Cruzo-me com um jovem barbudo, desgrenhado e, a meu ver, pouco limpo. Coisa que, nos meus velhos códigos, não merece grande apreço. Fui moldado para outro jeito de me apresentar...

Mas ali havia algo de novo que me atraiu. O «barbudo» ia com um menino ao colo, a conversarem, e ambos a espilrar felicidade — uma cena que sempre me seduz, me preenche e inebria. Porque acredito, firmemente, que todos nascemos para ser felizes(1)… Para mais, o menino, era mesmo um encanto. Cabecita loura, de cabelo grande e encaracolado. Deixei-me tocar. Aquele menino e a atenção que lhe era prestada tudo se transformava em festa. Uma festa de que o «barbudo», embebecido, era a sua coluna vertebral.

Rumino a cena: Não há dúvida de que o 'ser-humano' é mesmo um 'ser-contraditório'… E encontro-me com Pai Américo — «onde estiver o bicho homem ou a bicha mulher, aí está a marca da imperfeição».

Em termos de pensar/sentir, logo passo da Pr. Carlos Alberto, para o nosso Beire/Calvário. Em todo o lado a mesma realidade — onde está o bem, por muito perto anda o mal. E vice-versa — onde está o mal, aí por perto está o bem. «Um anjinho que chora à espera de uma oportunidade»… Sempre a velha história de Khalil Gibran, o ensaísta libanês que mereceu o cognome de «o maior profeta do século XX»: «O Deus do Bem e o Deus do Mal» que se encontram no cimo de uma montanha… Tão irmãos que só a «sabedoria d'o Bem»(2) nos permite distingui-los…

O mesmo desafio: Aprender a amarmo-nos uns aos outros(3). Não como gostaríamos que todos fossem… Mas como cada um é / vai sendo... Porque «todos podemos servir-nos do nosso comportamento» — para libertar e/ou para oprimir… E a escolha é sempre de cada um.

2. Ainda há trabalho para a Isabel… Primeiro, via WhatsApp e, logo depois, por viva voz, a D. Teresa trouxe a novidade: «Agora já não recolhem as rolhas de plástico». Dadas as limitações da Isabel, D. Teresa já tinha ido connosco «levar as rolhas àquela casa que…». As duas carregam aqui em —Casa, eu conduzo e, novamente, as duas descarregam lá na Obra de Caridade ao Doente e ao Paralítico (OCDP), em Paredes.

Já aqui vos falei da importância das rolhas de plástico na vida da Isabel, aqui no Calvário. Nunca viu nenhuma das «cadeiras de rodas» oferecidas pela Lipor nem sabe que «em comunicado, aquela Associação de Municípios para a Gestão Sustentável de Resíduos do Grande Porto aponta que a campanha, iniciada em 2006, encaminhou para a reciclagem 1.033 toneladas de tampas tendo sido investidos 663.254€ na entrega de 2.094 equipamentos ortopédicos e similares, que "fizeram toda a diferença" na vida dos 740 beneficiários abrangidos».

Isabel não sabe nada disto nem eu sabia bem o que era a «Operação Tampinhas»... E nem agora é possível explicar à Isabel nem a tantos portugueses e amigos do Calvário que «recolhem e guardam as tampinhas para, depois, entregar». Nem sequer sabemos se a OCDP algum dia recebeu alguma cadeira de rodas graças às rolhas que para ali vão do Calvário — guiados pelo empenho da Isabel. Mas aqui é que eu vejo toda a beleza destas coisas. Elas falam-me do mistério da «incompreensibilidade de Deus». Do mistério do sofrimento e do mal – também «incompreensíveis». E, mais que tudo, da «incompreensibilidade do ser humano» — 'barbudos e mal arranjados', mas também enternecidos e bondosos…

O desassossego da Isabel caía sobre quantos com ela convivem mais de perto. As tampinhas são a sua grande ponte-e-fonte de ligação positiva com os outros. Chora baba e ranho — num pode ser, o saco está cheio, lá em baixo, e agora veio uma carrada delas… Aquela de Cete, que teve o home doente c'má Fátima, não podia vir porque tinha de tratar do home, agora trouxe tudo… É uma carrada, num pode ser…

Pe. Alfredo, atento a estes nadas (que são o tudo deste Calvário…), apercebeu-se da situação: uma nova legislação da UE, entrada em vigor, obriga as tampas a ficarem 'presas' à garrafa. Mas se a Lipor encerrou o ciclo de recolhas, aqui mais perto de nós, a Ambisousa mantém o seu Projeto Tampinhas e Embalagens. Assim, a Isabel continuará no seu trabalho e nós iremos entregar lá…

A paz voltou ao nosso mundo Isabel. E eu até já me sinto a moer-me para levar lá a Isabel a ver o fruto da sua dedicação à causa…

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1 Nascemos. Mas… depois, tudo depende do nosso desenvolvimento e… do rumo que ele tomar.

2 A sabedoria do lavrador na escolha das batatas da semente… Ou: «Pelos frutos se conhecem as árvores»…

3 Este é o 3.º e último dos «Três Mandamentos de Valor Universal» - Traduzir o velho mandamento do "amai-vos uns aos outros" destoutra forma: Darmo-nos as mãos para, assim juntos, podermos ajudarmo-nos a aprender a amarmo-nos uns aos outros. Porque ninguém ama por decreto nem por mandamento. O amor é pura gratuidade.

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]