
BEIRE - Flash's
No "espírito" de Pai Américo
1. A 'CTA'1 de desmumificar o espírito. Já aqui o tenho partilhado convosco. Encrustou-se-me na pele a ideia de que os escritos legados por um autor são a múmia do seu espírito - que foi vivo. Foi, mas agora está ali encarcerado à espera de um leitor que o "ressuscite". E no-lo transmita vivo e actuante - no hoje, aqui e agora de um determinado tempo e lugar. Encanta-me saborear o Evangelho (toda a Sagrada Escritura!) a esta luz. Penso que era disto que D. António Ferreira Gomes falava ao dizer que "o cristão precisa ler o jornal à luz do Evangelho e ler o Evangelho à luz do jornal". Aliás, não deixa de ser curioso que um dos 'biógrafos' de Jesus - António Ganzalez - diga que, para compreender os relatos da experiência pascal, "é preciso mudar todos os esquemas e ler Isaías 53, 3-54, onde se encontra o esquema a partir do qual se contou a morte, sepultura e ressurreição de Jesus"2. ...
Desde que comecei a deixar-me apaixonar pela Obra da Rua e pelo Calvário em particular, para onde acabei por ser arrastado, não me canso deste aprender a ler Pai Américo à luz do Evangelho e ler o Evangelho à luz de Pai Américo - em que ele soube descobrir o rosto de Deus no Pobre abandonado.
2. 50 anos depois ainda são gaiatos...Acabo de estar à mesa com o Falcão que, quando em 1959, cheguei a Paço de Sousa, era um dos muitos batatinha da D. Sofia, a dormir no apartado das Senhoras, por cima da cozinha, na Casa Mãe. Nem ele nem eu nos lembramos desse tempo. Também não é preciso. Contento-me em saborear estas histórias que nos unem - como prendas que Deus nos vai dando para saborearmos melhor o grande dom da vida. Para que ela se vá tornando, em nós, fonte de mais vida e vida em abundância (Jo 10.10).
Frente a mim, está o Quim Peroselo, (senhor Vieira!) e a Lala, sua esposa. Deste, lembro-me bem. Era um adolescente, caladinho, observador, modelo de um rapaz bom e disponível para aprender a entrar na vida adulta pela porta da simplicidade e da verdade. Ele também se lembra de mim. - Então num lembra ?! Era o frei Simeão...
Antes de ir para a mesa, estivemos juntos na Eucaristia. A celebrar os 50 anos de casados que o Falcão e a Fátima agora completam... Com o casal, estava a família de sangue e alguns "especiais" - porque família de coração...
Há 50 anos, foi P.e Telmo que os casou, em Malanje - onde eram ilustres cabouqueiros, empenhados na afirmação da Obra da Rua em África. Hoje foi ainda P.e Telmo que, de novo, presidiu à renovação do seu compromisso de amar-te e respeitar-te até ao fim da minha vida.
Segundo relata o P.e Telmo, no vapor Rita Maria, embarcaram dois grupos de venturosos cabouqueiros - o de Malanje e o de Benguela, com P.e Manuel. No grupo de Malanje ia o Falcão, com 11 anos; o Fernando Dias e Emília, que tinham acabado de casar. O Quim, o Júlio, o Manelzito, ... Erguida a Casa do Gaiato, atirando-se à vida, Falcão especializou-se no cultivo e amanho do algodão - que era o que estava a dar. - E nós tínhamos que comer e dar de comer aos meninos que iam entrando...
P.e Telmo, comovido, resume: O Falcão foi sempre um bom rapaz; ajudou muito a Obra. Lá conheceu a Fátima. Enamoraram-se, casaram na nossa Casa. A esposa é a bondade em pessoa... Sempre estiveram muito connosco.
3. Ele está vivo no meio de nós... Baseados em repetidas afirmações do próprio Jesus, nós - os crentes - gostamos de repetir esta afirmação - Ele está vivo no meio de nós (Mt 13, 36-43). Acho curioso que isto apareça num contexto que coincide com o "Eu e o Pai somos Um... Vim para que sejais UM, como Eu e o Pai somos UM".
Olho a festa do Falcão com a sua família de sangue e sua família de coração. Paro-me neste querer vir ao Calvário celebrar os 50 de casados. Em reciprocidade de comunhão amorosa com a Obra da Rua que, na roda da vida, lhe deu a mão. Olho os tempos que correm, a moda grassante dos casamentos tipo "lenço de papel" (usa e bota fora...), a raridade dos corações agradecidos (Lc 17, 11-19); olho o ter de vir de véspera (moram em Cascais), o quer trazer consigo a família de sangue; olho a presença de P.e Júlio - actual director da Obra.
Pego na história deste e de tantos outros gaiatos. A Obra da Rua é que o salvou do vazio causado pela morte precoce da mãe. Cada um dos irmãos foi "entregue" a mundos bem diferentes. Este veio para Paço de Sousa. Lá nos encontramos em Dezembro de 1959. Antes que o coração registasse qualquer memória, separamo-nos. Reencontramo-nos agora - em festas de doces memórias de coração. Deus louvado!
Penso, sinto, acredito vivamente que tudo isto significa a presença viva de Pai Américo na minha vida e na de tantos que um belo dia se deixaram tocar por ele - um louco do Evangelho, um apaixonado pel'O Filho do Carpinteiro de Nazaré...
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1 Uso esta sigla com frequência. Porque acho que os grandes "mistérios da vida" merecem ser estudados (Ciência); o lidar bem com eles exige treino (aprender Técnicas) e, sobretudo, exige muito auscultar e aprender a expressar os ecos da sua presença em nós (Arte). Assim, tudo tem a sua CTA ... Desmumificar seja o que for exige a sua CTA.
2 Ver Jesus Cristo - para principiantes, A. Gonzalez, ed. salesianas, 1997.
Um admirador