BEIRE - Flash's
José Matoso no Calvário!...
1 —
Fomes de ser "filho de ALGO"… Lembro aquela baralhação
interior do querer e não querer… Eu queria ser algo…Mesmo sem
ter nascido fi(lho) d'algo… Andava sobre os meus 13 anos e
passava do 1º para o 2º ano, lá no Mosteiro de Singeverga, onde ambos
nos movimentávamos. O professor de português já tinha conseguido despertar-me
para o gosto de entender as palavras mais o gosto de as empregar bem
— quando, nas nossas redações semanais, as usava. Não gostava
era do trabalho de ir ao dicionário ver todas as palavras que eu não sabia.
Porque eram muitas… Mas recordo a palavra fidalgo… Uma coisa que eu
sabia que não era nem podia vir a ser… Ai aquela secreta alegria da experiência
do sentir alargarem-se em mim os meus horizontes de ser, sempre que
descobria o significado de uma palavra que, para mim, ou era nova ou não cabia
ali naquele contexto!…
Era o ano de 1950. Entretanto, entra no Mosteiro o José Matoso — um postulante a monge… Estou a vê-lo. Alto, concentrado em si, cabeça ligeiramente inclinada, como manda a Regra de S. Bento — inclinato capite, defixis in terram oculis… Em seu hábito de postulante. A nós, miúdos, aquilo era um desafio: ele era, nem mais nem menos, filho do autor dos nossos manuais de História e de Geografia Universal — cheio de mapas encaixados no fim… Se o filho de gente tão importante vinha para ali, era porque… E nós também já éramos aprendizes para vir a ser aquilo…
Depois, assisti à sua tomada de hábito, noviciado, juniorato, profissão solene, ordenação sacerdotal… Ficou-me um "santinho" que ele próprio concebeu e desenhou — para memória dessas datas. Tinha uma forma mais sobre o quadrado, não sobre o retangular, como era habitual. Uma novidade que me caiu bem, naquela cultura de que eu era aprendiz… Uma paisagem de montes e vales. Com um pico viçoso de verdura, a destacar-se ao centro. Sentado no cocuruto, como que em contemplação, um menino, sozinho — entre o céu e a terra. E do Céu vinha uma mão a convidar o menino a apoiar-se nela…
O tempo ia passando, mas o Frei José de Santa Escolástica sempre me ficou como uma referência. O 1º artigo que escreveu na revista monástica Ora et Labora foi sobre o Mosteiro de Travanca… Com desenhos dele, a ilustrar o que resta do românico e o que já são acrescentos do tempo… Minha secreta paixão pela Rota do Românico pode ter começado por aí…
Mas o que mais ficou a pesar como lastro no porão do navio foi aquele "santinho"…
2 — À descoberta de "outras fidalguias"… A imagem do menino sozinho, entre o céu e a terra, com aquela "mão de Deus" a prometer-lhe amparo, sempre me acompanhou e ainda acompanha. Porque é assim que gosto de me ver — um desamparado, bem seguro nas mãos do meu AMPARO… Como se reza nos Salmos : "Se Tu lhe retiras a mão, volta ao nada…"
Quando, no sábado passado, soube da morte de José Matoso, em seus 90, senti a alegria de "ver" mais uma estrela a acender-se no Céu que me espera… Ai quanto gostei de saborear uma entrevista publicada n'O Público e alguns textos dele que a família selecionou para partilhar no seu funeral e que o Sete Margens pôs ao nosso alcance. São textos que falam alto da busca de uma outra fidalguia que nos ligue a ALGO que não venha "nem da carne nem do sangue"… E é nisso que me sinto irmão de José Matoso — desde o tempo em que percorremos juntos os mesmos caminhos de busca. E que, a mim, me trouxeram até ao Calvário.
3 — Os "testemunhos de vida"… Em dezembro de 59, eu vim embora. Ele continuou mais uns anos. Depois, soube que também ele saiu. Vi o nome dele agigantar-se nos mundos da História Medieval, com incursões pelos mundos da mística, também com expressões de medievalidade e o que ISSO pode significar para um crente…Fixei dele esta que lhe saiu na entrevista que O Público nos ofereceu: "Para os Padres do Deserto, a meditação não é a descoberta do Ser, é a descoberta de Deus. Mas não sei se há grande diferença entre Deus e o Ser. Acho que é na concentração que o homem pode encontrar a verdade das coisas, a natureza, a autenticidade. Aquilo que está por detrás". Porque é assim que eu sinto a vida que pulsa em mim e aqui no Calvário. Uma busca da nossa autENTI(ci)dade. Uma busca gostosa, jamais concluída.
As voltas que a vida dá! Hoje, gosto de sentir-me família de José Matoso — um buscador imparável… Foi isso que me trouxe até aqui. E é isso que aqui me prende — como um admirador!… Em busca de caminhos (sinodalidades!…) que nos levem a porto seguro na relação com a Segurança Social, sem nos deixarmos "cair na vulgaridade das Obras semelhantes" — porque somos" uma palavra nova, tirada do Evangelho"…
Um admirador
[Escreve segundo o acordo ortográfico]