BEIRE — Flash's

… Isto faz muito bem à alma…

1 — Detesto os "profetas da desgraça"… Já aqui vos falei desta cena. Mas, com alguns tons diferentes para variar, ela vai-se repetindo. E, infelizmente, penso que sem grande proveito para ninguém. Vamos recordar o lamiré de entrada:

O casal entrou no restaurante, acompanhado pelos seus três filhos pequenos. O mais novinho, dengosamente encostado ao pai, quando este pega na lista para escolher, murmura de um jeito que deu para ouvir nas mesas à volta — ó pai, eu posso escolher um gelado para a sobremesa?...

Duas velhotas, duma mesa ao lado, desatam numa conversa que foi ouvida pelo pequenito: — Isto hoje é assim, os miúdos só pensam em gulodices. Um gelado só faz mal… Por isto, aquilo e aquele outro… O pequenito começa a chorar: — Ó pai, eu fiz mal? O Jesus ficou triste comigo por eu pedir um gelado? O pai tenta consolar o pequeno. Entretanto, um vizinho também do lado, em quem os cabelos brancos falavam de sabedoria, levantou-se serenamente e, ao passar pela mesa do pequeno, segredou-lhe: — O Jesus ficou muito contente. O gelado faz muito bem à alma…

O almoço prosseguiu sem incidentes. No final, o pai pediu um gelado para cada um… servido aquele pitéu, cada um começa o ataque. Só o menino ficou hesitante, a olhar para o seu… E, para surpresa de todos, levantou-se, foi à mesa da velhota do discurso moralizante e, sorrindo, dispara: — Prove um bocadinho, faz muito bem à alma…

2 — Coisas de Pe. Alfredo, o Quim e a Lala… Já lá tenho ido mais vezes, com Pe. Telmo, Pe. Alfredo e uma ou outra doente com menos dificuldades de movimentação. Mas Pe. Alfredo quer sempre para os outros a festa que o visita. Conversou com o Quim e a Lala. E o sonho realizou-se — os nove rapazes e seus cuidadores foram todos lanchar a casa da Lala... Não pude estar presente, mas ouvi os relatos e vi fotos. Que inveja!... Lembro que fiquei mesmo com pena de não ter estado. Gosto de ver uma "família alargada" assim unida. Encanto-me, a saborear estes bocadinhos de paraíso na terra. Para mais, aqui, trata-se de famílias de coração — coisa ainda mais rara. São antigos gaiatos a convidar novos gaiatos e/ou doentes do Calvário. E, por um saber de experiências feito, sei bem o jeito de receber da Lala e do Quim Proseloo Vieira, no dizer da nossa Isabel…

Agora, foram os doentes todos, com seus cuidadores. — Aquela mesa parecia um casamento, ouvi depois dizer… Desta vez, pude estar e ver para crer. Não sei se Pe. Alfredo estará ou não a abusar da bondade do casal. Sei é que os vi felizes por nos receber a todos e eles mesmo convidaram outros amigos deles e d'a Obra que nos une. Isto vem atestar a justeza da minha velha tese — é crime deixar que, seja lá pelo que for, a Segurança Social entre a matar e, em vez de nos darmos as mãos para PROsseguirmos em cada vez melhor qualidade, ameace as Casas do Gaiato e Calvário de desaparecerem. Por falta de dialogo1, de lucidez e bom senso. Nascemos para nos complementarmos — somos obra vicariante2, não obra de perigosa concorrência… Felizmente, parece que os ventos já estão a mudar. O diálogo(s) é uma ciência que é preciso estudar, uma técnica que é preciso aprender e uma arte que a cada um pertence aprender a expressar. Tal como o amor — im+possível, onde o diálogo não puder entrar… Mas vamos lá ao evento:

3 — Tudo pode concorrer para o bem… A festa já estava no ar. Todos, galhardamente, desempenhavam o seu papel — compartilhar o convite da Lala / Quim. Os cuidadores dos mais limitados atendiam à qualidade e quantidade do que o seu doente comia ou bebia — se adequado ou não ao seu ser assim, diante de Deus e dos homens que Ele ama. De mini super bock em riste, vou a um e outro lado… Achega-se a mim um velho do Restelo. Começa a profetizar desgraças: — Olhe para isto: são fritos, têm ovo; com este calor, estas gorduras… podem alterar de um momento para o outro. Isto é um perigo... O Calvário está assim. Isto vai cair… Está a ficar "uma desgraça"…

Indiferente a tudo, D. Joaquina, a nossa Kininha, a cada coisa que lhe chegavam, ela festejava: — As pataniscas estão uma delícia… Os panadinhos estão uma delícia. Afinal, tudo era uma delícia. Outros diziam o mesmo, sem abrir a boca. Tudo neles espirrava a alegria de estar ali.

Ninguém ficou doente. E, no íntimo de cada um, os ecos da festa vivenciada ficaram lá registados a fazer muito bem à alma…

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1 — Nunca é demais insistir. Dia+logar é, mesmo na inevitável diferença de pontos de vista, não perder o fito que nos é comum — a busca da Palavra (logos!) que a todos une na mesma vontade — a conquista d'O Bem Comum àquele grupo, naquela causa.

2— Vicário (vigário) é aquele que faz a vez de… naquilo que o outro não tem como fazer — para bem do seu grupo de pertença. Assim, a Escola é uma instituição vicariante da Família. Nenhuma família sozinha pode dar aos filhos toda a formação — primária, média e superior — de que a criança precisa para singrar pela vida fora como cidadão de quatro costados… Cumpre ao Estado ser vicário da Família.

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]