BEIRE — Flash's

Também "ateus" e "fariseus"(1) podem…

1. Um email que faz pensar… Veio dirigido à Direção da Obra da Rua. Porque também me diz respeito, acaba por chegar a mim — já mais tarde. Volta e meia dou comigo a ruminá-lo. Sobretudo agora, na sequência das JMJ. Aquilo de "uma Igreja para todos", interpelando-nos assim daquele jeito, quase me leva a parafrasear o Papa Francisco e sonhar "um Calvário para todos, todos, todos"…Com "ateus" e "fariseus" de coração aberto à construção de um mundo novo em que ninguém fique nas periferias… Explico-me:

Pe. Júlio indaga: «já lhe dei isto?!»... Resume o conteúdo. Ouço-o a correr, e lembro outros casos que têm o seu quê de semelhante. Antigos colegas do Banco, velhos leitores e assinantes d'O Gaiato que, por isto ou aquilo, me identificam nas crónicas de Beire, e querem um olá meu…

Já com energia mental disponível, depois dou comigo a ler mais devagar o tal «isto» — um email. Saboreio cada palavra, sinal de que ainda sofro de algum apego à imagem de mim próprio… Sempre ouvi dizer que "o nosso ego é a última coisa a morrer em nós — só meia hora depois da morte"… Descubro que afinal aquele email era outra coisa. Ainda de maior surpresa. Logo nas primeiras linhas, um espanto. Acordam-se em mim momentos mágicos de contacto com páginas não esquecidas d'O Gaiato. Como n'aquele tempo (ainda em Singeverga), também hoje, aparecem "ateus" que, não conseguindo acreditar no Deus Invisível que movia Jesus de Nazaré e que moveu também Pai Américo, acreditam nos homens que, em suas obras e conduta, testemunham que Ele está vivo na vida deles. Diz o email:

«Há muitos anos que sou assíduo leitor de O Gaiato e assinante desde que os gaiatos deixaram de ir ao Banco levar o jornal». Diz que lhe chamou a atenção o facto de todos os artigos serem assinados, menos «um que achava sempre muito oportuno e o autor apenas assinava Um Admirador». E apressa-se a esclarecer: «Não tenho qualquer relação com a Igreja pois sou ateu». Conta-nos a sua experiência de como ficou seduzido por Pai Américo — sua Obra e pel'O Gaiato. Assim: «Comecei a trabalhar num Banco aos 14 anos como groom e um dia vejo entrar no Banco um senhor alto, com uma vestimenta preta até aos pés e, rapazinho vindo da aldeia, perguntei a um funcionário quem era aquele senhor, ele respondeu-me que era o Padre Américo e falou-me da sua Obra. Nunca mais esqueci aquela imagem».

Paro-me a ruminar: Que 'dinamismo humanizador' irradiaria Pai Américo que atua assim por atração sobre um jovem de 14 anos?! A ponto de, cerca de 80 anos depois, ainda fazer dele um «assíduo leitor e assinante d'O Gaiato» e o leva a testemunhar: «Nunca mais esqueci aquela imagem».

2. Velhos ecos de Pai Américo… Ainda com o papel na mão, viajo dentro de mim, com Pai Américo a irrigar de sonhos a minha juventude inquieta. Lembro que uma das fontes que lhe dava força provinha dos "ateus" (a que chamávamos comunistas…). Gente que não queria nada com padres, mas sentiam-se impelidos a apoiar a sua obra (a Obra da Rua que começava a nascer). E ia de encontro aos seus ideais de um mundo novo, em que a justiça social fosse resposta palpável às necessidades mais prementes do Portugal de então. Não faltando até quem o visse como um comunista disfarçado… «Você é dos nossos, mas esconde-se atrás dessa batina…"

Lembro comentários de Pai Américo a tais situações: — Eu que enverguei a batina por amor deles, agora vejo a batina como empecilho para chegar a eles… Como que prenunciando um jeito novo de ser testemunho silencioso do Evangelho. «Pastores a cheirar a ovelha» de tão perto e tão discretamente andarem no meio delas sem se destacarem pela vestimenta… Esse é o caminho a seguir, um caminho que já sei defender, mas que ainda não sei trilhar com a segurança que urge…

Tecendo considerações sobre o processo que o levou ao dito email, refere uma crónica de Pe. Telmo onde leu: «Um aviso que, logo de manhã, me fez o Dr. Abel». Quis saber se esse Dr. Abel era o seu colega. Confirmada a suspeita, prossegue: «Recebi hoje O Gaiato e o artigo de Um Admirador levou-me a felicitar o Sr. Dr. Abel dizendo-lhe:

Caríssimo Abel, tens no Júlio um grande admirador. Bem hajas!»

Termina pedindo que o recado me seja transmitido. Agarro-me à minha velha litania: Iluminado pela Tua sabedoria e impelido pelo Teu Espírito quero proseguir — escrevendo como quem reza, como quem luta pela libertação dos oprimidos, como quem busca forma de ajudar a que cada um se descubra a partir d'o seu Melhor

3. Passos a dar em novas SINodalidades… Olho esta situação como um avanço prometedor… Estamos numa fase nova da história do Calvário, em que já não é mais viável ser "obra de Deus" sem ser também, ao mesmo tempo, uma "obra de César". Pel'os sinais da História, já está a chegar a hora em que não é mais possível ser "obra de César", com uma qualidade que valha, sem acolher e respeitar as "obras de Deus"…

O Júlio, com seu email, atesta a importância de apostar num dinamismo humanizador em vez de pregações de sacristia sobre o real…

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1 — Gosto de me com+frontar com estas duas palavras — para mastigar a realidade que circula por detrás delas. E pensar um Calvário "para todos, todos, todos". Com esses "ateus" e "fariseus" que, mesmo assim, também acolhem a Boa Nova do Filho do Carpinteiro

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]