BEIRE - Flash's
«Tu que desces, vais subindo...»
1. Foi à hora do pqn'almoço… Já muitas vezes, aqui no Calvário, vi gestos daqueles. E, sem ridículos de vanglória, acredito que também já os tive. Todos, felizmente, podemos ver deles em muitos outros. São uma expressão natural da nossa fome de dar-se, comunicar-se, ser útil. Pois. Mas foi naquele dia que o clic se me deu. Deixei que o meu olhar se parasse para ver o bonito que aquele gesto pode significar. Aqui no Calvário e ou fora dele. Sei do «estatuto sócio profissional e económico» desta gente. Por isso vejo naqueles gestos um convite que me arrasta: — Abel, Maria, Alfredo, se queres subir… o caminho é por aqui…
Ele vem do Porto, regularmente, desde há muitos anos. Chega à terça, ainda sobre o pequeno almoço, e regressa na quinta, já depois da missa — a passar das 17h. Brincando com a linguagem do turismo, gosta de dizer: dou ao Calvário três dias e duas noites… Entra, cumprimenta, faz um chisquinho de sala, levanta-se e começa a arrumar a loiça para a copa… Noutros dias, vêm outr@s, com outros horários, para fazer outras coisas — que a vida de um Calvário (Obra de Doentes, para Doentes e Pelos Doentes…) sempre precisa e nunca dispensa. A lembrar a minha mãe: — Uma mulher(1), numa casa, tem sempre que fazer. Só uma sostra é que não vê isso…
Vejo voluntári@s, vejo residentes, vejo gente que sofre, desnecessariamente, por excessos de miopia mental nestas matérias. Gente que, sem dar por isso, me fala da sua falta de saúde emocional… E foi aqui que se me abriram os olhos — como n'os de Emaús, in illo tempore (Lc 24, 13.35).
Aquilo foi como se, com aquele gesto, me descongelassem(2) muitas doces recordações de menino e moço — a crescer(-me)… Crescer-me para o empolgante 'mistério da vida'. Na Escola Claustral do Mosteiro de Singeverga, ainda sobre os anos 50 do séc. XX. Fui à net para me ajudar. Mesmo com suas perigosas limitações, o dr. Google é uma bênção ao serviço dos curiosos… Sempre que sinto necessidade, gosto de me servir dele. E foi o caso. Saí mais rico. Com meus campos de consciência mais alargados nestas coisas. Vamos ver:
2. O poema que m'assaltou… Neste meu viajar-me cá por dentro, a saborear o doce prazer de estar vivo e poder observar a vida que pulsa em mim e à minha volta, saltaram-me aqueles dois versos que, já naquele tempo distante, tanto me tocaram e que, volta e meia, descongelam em mim: — Tu, que sobes, vais descendo! / — Tu, que desces, vais subindo! Senti-me já incapaz de reproduzir todo o poema de que estes dois versos são o final. Fui procurar. Folguei quando me apercebi que é um poema bem mais jovem do que eu pensava. Porque já fazia parte da Seleta dos textos propostos, naquele tempo, para a nossa formação integral (que não só académica…). Desconhecia que é um dos primeiros poemas de Eugénio de Andrade. E reza assim:
Encontrou-se a Caridade / Com o Orgulho, certo dia:/ Subia o orgulho uma escada, / E a Caridade descia. // Ela humilde, ele arrogante, / No patamar dessa escada / Os dois, cruzando-se, viram / Uma rosinha pisada. // Emproado, o Orgulho, vendo-a, / Deu-lhe nova pisadela; / De joelhos, a Caridade / Deitou-se aos beijos a ela. // Mas nobres passos se ouviram / De som divino e tremendo: / O Orgulho seguiu subindo, / E a Caridade descendo... // E a voz de Deus, entretanto, / Disse, bramindo e sorrindo, / — Tu, que sobes, vais descendo! / — Tu, que desces, vais subindo!
Hoje, já mais inteirado sobre as 'dinâmicas' da nossa vida interior, adivinho parâmetros que presidiram ao desabrochar do grande poeta que, mais tarde, se nos foi revelando em Eugénio de Andrade. Com pena de que tais 'parâmetros' estejam cada vez mais afastados da educação atual… E, agora, quase só aparecem numa qualquer espiritualidade confessional. Coisa que lhe faz perder as suas peculiares características de «património comum da humanidade». Algo a repor no audacioso projeto The Common Good of Humanity.Esse Bem Comum, ainda por "definir", que poderá vir a dar a matéria prima da Casa Comum da Humanidade / The Common Home of Humanity, de cuja construção urgente o Papa Francisco se faz arauto autorizado na encíclica, ainda pouco trabalhada, Laudato Si.
3. — (…) Logística já tenho eu que chegue! Deixo passar diante de mim a interminável lista de gestos semelhantes que sempre gosto de registar. Destaco uma do início destas mudanças ERPIstas.
Porque, academicamente, é um perito nessas áreas, foi-lhe atribuído um trabalho de organização — seleção, arquivo, etc. Aguentou bastante tempo. Mas um dia, delicadamente, desabafou:
— Desde há muitos anos que, semanalmente, venho aqui ao Calvário fazer a minha desintoxicação sócio profissional e económica. Tenho de voltar ao meu estar-com os doentes. Nos serviços que mais me ponham em contacto com o eixo do meu ser-no-SER — minha verdade essencial.
Logística já eu tenho que chegue…
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1 Numa cultura machista, a casa é coisa de mulheres… Hoje sabemos que é coisa de gente que se presa em servir…
2 Gosto desta imagem, usada na Análise Transacional, para significar vivências passadas que, estimuladas por isto ou aquilo, acordam em nós com aquela força que levou a sabedoria popular a dizer que «recordar um amor é amar outra vez»… Coisa que também se pode dizer da dor — porque … é sofrer outra vez.
Um admirador
[Escreve segundo o acordo ortográfico]