BEIRE - Flash's

Numa ERPI, «isto» não era possível...

1. Experiências de «família do coração»… Estas coisas sucedem assim, diante dos meus olhos, quando menos as espero. Tão naturalmente como o correr da água que sai da fonte. Desperto, dou comigo a pensar no Calvário de ontem — 1954/1956. Ainda à sombra de Pai Américo. Logo, daí em diante, já em construção, timonada por Pe. Baptista. Vejo agora o Calvário de hoje/amanhã... Em busca de poder continuar a ser si próprio - «palavra tirada do Evangelho»… Mas já num tempo de pronto vestir, take way e casas diff — tudo já pensado. Papinha feita, prontinha a meter na boca… Porque o tempo já não dá para pensar. Tudo comandado pelo todo poderoso «nós pensamos por si»… Coisas que acordam em mim os medos de «cair na vulgaridade das obras semelhantes»…

É o domingo 03.11.24. Num fim de semana cheio de visitas para Pe. Telmo e com desejos de conhecer o Calvário. Chegam uns 'meninos' de África — já pais e avós. Orgulhosos da sua história, a querer mostrar aos seus as raízes de onde procedem... Lembro a última crónica de Pe. Baptista. Já em Paço de Sousa, recebe a visita de um rapaz que se criou com ele, aqui em Beire. A festa daquela crónica! Nunca mais esqueci. Não fora o espaço limitado, iria buscá-la para, convosco, recordar e saborear de novo.… E ainda Pe. Acílio, numa surpresa da TV, com Luís Aleluia — o Menino Tonecas

Pe. Alfredo estava fora, a retemperar forças, depois do desgaste da inauguração das obras exigidas por lei. As visitas vinham de Viseu e eram seis ao todo — o pai (ex-menino de Pe. Telmo, em Malanje), esposa, dois filhos e seus cônjuges. A convite de Pe. Telmo, chegaram antes do almoço. Em resposta a quem não sabe receber sem um caloroso almoçam aqui connosco…

Cozinheira avisada, pôs as visitas nas mesas do centro — destacadas dos da Casa, entre as mesas dos rapazes, dos doentes e a mesa do quartel general da nossa Comunidade. Afastadas de Pe. Telmo. Um voluntário, já calejado no desenrolar das histórias do Calvário, ao ver os olhos tristes de Pe. Telmo, atado assim num longe dos meus meninos, vai, fala com a cozinheira e, num instante, faz-se ali uma mudança de última hora. A contento de Pe. Telmo e de quem vinha para estar com ele. E a contento de todos nós os que aprendemos a amar o Calvário sonhado… Assim podia ver-se melhor o que é uma família para os sem família…

2. Família — «… mas isso não nos diz nada»… Sem me deixar cair em recordações tristes, vou quase dez anos atrás. Vejo-me diante de um Inspetor da Judiciária, a indagar de mim o que haveria de verdades e mentiras com o Calvário, acusado de… e de… e de… Inteirado de que eu não era pessoa para acusações nem defesas, porque o meu papel aqui era de transição, só até que o problema se resolvesse, entramos em conversa de amigos.

E foi aí que eu ouvi: — Pe. Baptista fala muito que «o Calvário é uma família». Mas isso, a nós, não diz nada. Para nós é uma instituição sujeita a regras e leis que são para cumprir. Dado o tom de cordialidade com que conversávamos, tomei consciência da importância daquela regra das artes de «falar em público» — tudo se pode provar ou negar, se os termos não se definem… E lembrei ainda um amigo, criado na Casa do Gaiato de Miranda, que já me alertara para estas coisas: «Família não é um conceito jurídico… Não podemos recorrer a ele para defender nada».

Deixo-me embeber pelas experiências vivenciadas nesta Casa. Em que também me sinto família — se não de Direito, pelo menos já de facto… Vou buscar o meu desenrolar-se, em mim, deste conceito de família — um pai, uma mãe, dez irmãos bem vivos e travessos que aí me precederam. Mais os quatro que se me seguiram. E toda uma estrutura rural cristã em que Deus é Pai — há que ter Fé. Ele que dá a panela também dá as couves para ela… Com brigas e amuos (coisa que nem entre os Apóstolos faltou… Mc 10,35-45). Mas tudo muito bem caldeado pelo «rezar e brincar juntos» — sinal seguro d'um Reino dos Céus em marcha. Assim numa Igreja doméstica, ideia que vingou, a partir de S. João Paulo II.

Foi onde tudo começou. Depois, foi só o alargar, em mim, os campos de consciência sobre os conceitos de família — jurídicos e tantos outros não jurídicos.Desde tios e primos até às estrelas, plantas e animais com que me fui familiarizando. Deixando-as colar-se-me à pele como parte importante de mim — porque já minha família, a dar cor e sabor à vida que está a desabrochar-se em mim e à minha volta.

3. Nada disto era possível numa ERPI... Saboreei aqueles momentos mágicos em que pude ver, pensar e sentir o que é uma família para os sem família. De onde partem tantas outras famílias, à maneira de Nazaré. Surpreso, ouço: Numa ERPI, isto não era possível!… Ah não, não! E não me desligo da abissal diferença entre um Calvário e uma ERPI, comandada por uma «senhora diretora técnica» — que pode muito bem nem sequer saber, com um saber de experiências feito, o que é uma família… De sangue e/ou de coração, como são estas de que vos falo. Porque à senhora diretora o que lhe é ensinado e ela exige é que «aqui quem manda é a Segurança Social — de que sou eu a representante»…

Assim, valha-nos Deus. Tudo se pode provar e/ou negar se os termos não se definem…

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]