BEIRE
Saber ouvir a voz de Deus...
SABER OUVIR A VOZ DE DEUS... São as 07:30h da manhã. Estou na praia de Leça. É o meu passeio matinal/meditacional. A maré está vaza. As rochas emergem da água e das areias de maré. Olham-me como quem quer falar-me. Neste meu silêncio e quietude (tanto ao gosto de Jesus de Nazaré, naquele tempo), paro-me a escutá-las. Lembro o Prof. Eng.º Alexandre Leite que, durante tantos anos, fez um fecundo voluntariado aqui, no Calvário. E muitas vezes me falava do seu amigo P.e Baptista. Daquela sua dedicação à causa dos deserdados da sorte - eufemismo que usamos para falar daqueles que, talvez, estejamos a rejeitar...
O Alex (assim lhe chamam os amigos) ia do Porto, aos sábados, para, com o Sr. Pacheco, D. Maria dos Anjos e Prof. Doutor Luís Amaral, ajudar nos pequenos-almoços, higiene diária, barbas e banhos dos doentes mais limitados. Por ali ficavam todo o dia, divididos entre atender os doentes e prestar algum serviço útil, quer no Calvário quer nos Rapazes. A vida pediu novos rumos ao Alex. Mas os outros voluntários do Porto ainda ali estão de pedra e cal. Agarrados ao remo, como quem tenta salvar o barco que ameaça perder-se, se não lhe botarmos uma mãozinha. Prestam um óptimo serviço e dizem-se altamente compensados, porque precisam disto como de pão para a boca... Testemunham, a si e aos outros, que nem só de pão vive o homem (Lc 4,4). Testemunham que todo o homem, para realizar-se como humanizando e humanizante, precisa de aceitar-se e revelar-se como um ser-de-ajuda. Isto é, ora ajudando ora deixando-se ajudar. Talvez por isso mesmo é que "quem lida com pessoas precisa de, periodicamente, rever os seus conceitos de Pessoa e de Ajuda"...
... PORQUE ME LEMBREI DO ALEX. A nossa ligação vem de longe. Dos acampamentos do CNE - Centro Nacional de Escutas. É que ele, na sua dedicação quase genética (...) aos Escuteiros, sempre gostava de lhes repetir, citando um velho professor seu, lá nas cátedras de Engenharia de Minas: - Oh, se nós soubéssemos ouvir o sermão das pedras!... Com o Alex, nos muitos Acampamentos de Verão em que acompanhava os meus filhos, aprendi a escutar as pedras. Na sua maravilhosa unidade, diversidade e (porque não dizê-lo?!) também na sua subjectividade...
Foi assim que aqui, na praia, com rochas multifacetadas e as memórias do Alex, voei de Leça da Palmeira para o Calvário. E senti alargarem-se em mim os meus horizontes de Ser. De aprendiz de vivente. E de aprendiz de relacionante... A precisar muito de saber olhar. Saber escutar. Escutar (Auscultar!) aquelas pedras vivas que, ali naquela outra dimensão da Obra da Rua - Calvário e C. do G. de Beire - esperam por mim. Como Corpo de Cristo chagado. Tantas vezes, no dizer de Isaías, mais parecendo vermes que homens. É fácil dar sedativos... Sem ouvir que suas vidas gritam por Verónicas e Cireneus que saibam COM+doer-se e botar uma mãozinha...
Porque, afinal, ali, no Calvário e Casa do Gaiato de Beire, aquilo que para muitos não passa de calhaus amorfos, gente que faz pena e, às vezes, até mete nojo (físico e emocional...), ali há muita VIDA EM ABUNDÂNCIA (Jo 10,10). Capaz de alimentar gente culta que, já num invejável top sócio-profissional e económico, todas as semanas, fiéis a uma voz interior que os chama, vai do Porto, para dar e receber MAIS VIDA. Cientes de que é dando que se recebe... (Ver O GAIATO nº 1875, Manicómios para o coração...).
Do SER PEDRA ao SER PESSOA... Este clic de que vos falo, deu-se-me quando, de repente, os meus olhos poisavam numa espécie de bolsa de quartzo. Que logo se estende em veio tortuoso por rochas além. A brilhar, quase transparente. Beijando e deixando-se beijar pelo sol que se alevanta, vindo lá de Castela... Que bonito! Que bonita é esta nossa Mãe Natureza! Com suas imanências e seus apelos à TRANS+(as)cendência...
... E é assim que me encontro com os olhos do Faneca - que nunca sabemos se nos vêem ou se apenas buscam algo a que bote mão para levar à boca; com o Xico, invisual e corcunda acentuado que, às vezes, parece cantar e repetir o nome de quem o serve; com o Valdemar que... Não sei que mundo interior o iluminou, no Domingo de Páscoa, ao beijar a Cruz. Interrompeu o seu baloiçar autista, deixou os fios com que sempre se entretém e, com uma unção que me fez saltar as lágrimas, por instantes olhou a Cruz que lhe ofereciam. E logo a beijou como quem sabe "ver", em realidade, o que ali está apenas em símbolo; com a Rosita que, segundo mo dizem, parou no seu fadário de sempre a correr de um lado para outro, e também beijou a Cruz. E com a Glória que, alheada a tudo, continuou agarrada à toalha que sempre traz consigo, para meter na boca e viver comendo toalha. (...). Tudo isto e o mais que aqui não cabe me fala, à maneira do velho Professor do Alex: - Oh, se eu soubesse entender o mundo destes rapazes e destes doentes aqui, do Calvário! Obrigado, P.e Baptista e P.e Júlio, pelo vosso repto para botar uma mãozinha...
Um Admirador