CALVÁRIO

O povo faz a sua jogada, depois desmobiliza-se logo, volta a ser pessoas. Voltam para as suas vidas, mas mais animadas, pois as revoltas fazem bem ao estado de espírito de quem as faz.

Erri de Luca, O dia antes da felicidade. Bertrand Editora, 2009, p. 28

Neste momento que escrevo, é dia 14 de Setembro, o sol ainda não despertou, nem os doentes, e a chuva cai copiosamente na noite escura. Foi ela que me acordou e saltei da cama pensando que tinha sido engolido por um dilúvio.

Celebraremos a exaltação da Santa Cruz e depois a Senhora das Dores. É impossível desligar estas celebrações do calendário litúrgico do Calvário onde nos encontramos.

As obras continuam o seu ritmo e como toda a criação sofrem as dores do parto, atrasado pela pandemia e por uma guerra absurda no leste europeu, mas que tem consequências universais, nomeadamente no acesso às matérias primas, à energia e ao cereal. Há custos humanos e económicos de que teremos de prestar contas: pela desistência de alguns e pela inflação que torna o custo de vida uma verdadeira epopeia.

O contrário também há-de ser verdade. O bem que se faz silenciosamente terá repercussões universais. É nisto que devemos acreditar!

Abrir a porta a uma visita, a uma pedinte, a um trabalhador, a um fornecedor é tarefa do Nana e de quem esteja na cozinha, junto do videoporteiro. Depois vem o pregão: Padre Alfredo, tem gente à sua procura. E lá vamos nós à procura de quem nos procura.

A realidade da vida mede-se pela qualidade do contacto humano. Exige-se a mesma elevação no trato de um desconhecido ou de um reconhecido. A humanidade deve ser pródiga. Devemos ter compaixão por quem foi espoliado da sua dignidade. É uma tarefa tão delicada que o pedido de dinheiro, sem mais, interrompe abruptamente. Assim seja.

Preciso de dinheiro para a luz e para a renda, para as coisas das crianças (imaginamos comida, roupa, medicação, etc.) e para as viagens. Estou sozinha. Todos me deixaram. Desabafam muitas vezes. O estar só é condição de dependência, não de liberdade! Dependência das exigências de um mundo cada vez mais burocratizado, dependência de ajudas sociais, dependência do imprevisto que pode sempre acontecer.

Dependência de uma independência falsamente anunciada como garantia de maioridade, cultivada pela publicidade de um paraíso a que todos terão acesso... mas do qual todos somos expulsos porque julgamos querer ser semideuses: eternos, saudáveis, bem sucedidos, competentes, ricos, sei lá mais o quê.

No final do dia, quando fazemos o nosso exame de consciência, reconhecemos que somos apenas demasiado humanos. Somos o que somos ou o que uma desordem mundial nos deixa ser. E tantas vezes somos apenas um número de cidadão, de utente, de contribuinte, um número sem valor.

Eu paro de escrever. A chuva não para de cair! Assim tantos seres humanos que hoje cairão irreconhecíveis porque não foram cuidados nem atendidos.

Padre José Alfredo