CALVÁRIO

Cemitério branco e liso

Varrido do vento norte,

Ai que limpeza de terra

Ai que limpeza de MORTE.

Maria Eulália Macedo, Construção no Vento Norte*, 1968.


Escrevo cedo. Ainda de noite. Escura noite de outono! Aguardo que hoje o céu esteja azul e extenso. Do Calvário vejo apenas a silhueta do cruzeiro da entrada, recortado pela luz pública que chega dos postes de iluminação da rotunda.

Por estes dias, um dos nossos colaboradores, o senhor Agostinho, com a preciosa ajuda do Ricardo, Ricky para a Adelaide, que o adoptou e o educou esmeradamente, que a acompanhou no seu regresso a Beire e, apesar do seu autismo, têm limpo o Campo Santo do Calvário.

Limpar os bueiros da água, varrer folhas, tirar flores de plástico lá deixadas por alguma visita há meses, recolher as velas acesas por um dia (- por uma alma! dizem), podar as azáleas, reunir a agulha dos pinheiros e dos cedros, colher o silêncio e a quietude de um pórtico românico e de um átrio para a eternidade cheio de modernismo (ou a simplicidade das formas).

Aproximamo-nos da celebração dos dias 1 e 2 de Novembro. A celebração da santidade de tantos e do pecado de todos impele-nos a este exercício de graça que é a purificação da memória e a gratidão por tantos cuidados em vida aos que foram desprezados (diga-se abandonados) pela nossa sociedade.

O alinhamento das cruzes de cada campa, no respectivo talhão, 9 de cada lado da avenida e com 24 lugares cada, numerados e com o sinal da cruz, ainda lembra, a quem tenha tempo e sabedoria para contemplar, a precisão com que foi tratada a vida de cada doente. Vida frágil que a morte transforma em puro espírito, não mais preso a uma carne ferida, macerada.

Este espaço foi criado em 1965 pelo imperativo da misericórdia de dar sepultura aos mortos, quando o cemitério civil começou a recusar tantos inquilinos. Mas também, nas palavras de Padre Baptista, recolhidas por Henrique Manuel Pereira (in À volta de Padre Baptista, Modo de Ler, 2017, p.50) porque queriam que os doentes fossem ali rezar pelos doentes que já partiram. E são muitos os que ali vão. A morte fica assim a fazer parte da vida de uma forma natural.

A graça precede a natureza e sucede-lhe quando esta definha e volta ao pó de onde foi arrancada. É um ministério criar condições para que o mistério seja vivido e aceite. Ou não será uma graça conceder a quem não saiba o que é a vida aceitar o que seja a morte? Esse partir e nunca desaparecer... que um nome e um número nos recordam sempre.

Já me ensinaram a olhar o alto a partir do centro do Campo Santo. Dai aprendemos a ver apenas o ÚNICO necessário. O RESSUSCITADO, o que se fez para todos TUDO.

*O título pode ser encontrado na edição da Obra Completa da autora amarantina: O MEU CHÃO É DE VERTIGEM, 2021.

Padre José Alfredo