CALVÁRIO
Sinto-me grato por haver recebido ao menos esse pouco de religião num tempo em que andava bem precisado. Desde alguns anos eu só entrava numa ou noutra igreja apenas para ver os vitrais ou as abóbadas góticas, sem nenhum proveito espiritual. E nenhum era o quase proveito de agora, pois que adianta a religião sem direção espiritual, sem quaisquer meios de graça exceto uma oração eventual e rara e algum vago sermão?
Autobiografia, Thomas Merton. Petra Editora, p. 73
Aproxima-se o tempo da celebração da encarnação do mistério de Deus. Parece paradoxal que continuemos a insistir nos termos Encarnação, Deus, Tempo. Ele não é espírito? Não é a pura existência sem princípio? Não é a eternidade? É tudo isso e o mais que não conseguimos pensar ou escrever. Por isso Paulo tem razão quando escreve aos Coríntios: sendo rico fez-se pobre para nos enriquecer (2ª carta, versículo 8). E junta: sendo todo-poderoso fez-se escândalo na cruz para nos salvar (1ª carta, versículo 1).
O tempo de natal é um tempo misterioso. Obriga as pessoas da nossa sociedade a correrem, como aliás o fizeram os pastores na busca do presépio, convocados por anjos. Outro termo paradoxal. Nós hoje corremos para onde e para quem? Corremos para o mito do Pai Natal, aquele que satisfaz as necessidades próprias, pessoais e egoístas. Já ensinamos as crianças a escrever-lhe a pedir o que nós induzimos que têm direito.
Mas também é verdade que a Igreja deixou de ter capacidade de anunciar um menino nascido num presépio, filho de uma mulher jovem prometida em casamento a um homem simples e carpinteiro, ainda que descendência real, davídica. O mistério deixou de ter lugar nas nossas sociedades. Tudo é desfraldado. A revelação como adesão a um ser é demorada. Logo impossível, dizem. Não há tempo a perder com os outros, sobretudo desconhecidos ou deserdados de família e bens. Não há lugares secretos, tudo está invadido pelo desejo da inveja e da manipulação. O que não atrai humanamente é repudiado! Quem quer aprender a amar o feio, o débil, o pobre?
O presépio é um lugar de escuta, de silêncio, de contemplação e de adesão. Mas quem quererá invejar uma vida que vai ser perseguida, rejeitada, condenada e acabar em cruz, talhada com a madeira que foi originalmente usada na construção do estábulo onde o messias-rei havia nascido?
Tudo o que somos e desejamos está envolvido nesse manto da realidade total que precisamos de conhecer para amar. Há uma única humanidade com muitos membros. E se um se perde todos perdemos. Se um se salva todos beneficiamos da salvação! Como é salvífico aceitar e cuidar da vida sempre e não só quando aparentemente ela tem vitalidade. Não existimos apenas quando podemos dizer EU SOU. Também vivemos quando outros nos dizem TU ÉS.
Soubemos a 19 de dezembro que partiu para a eternidade o Senhor Alcino, que durante anos
visitou o apoiou o Calvário com os seus bens e a sua presença discreta e amiga. Era irmão da D. Leopoldina, voluntária junto dos doentes, que cada semana vinha de Marecos para Beire para deitar mão a muitas tarefas: cozinha, higiene, companhia, orientação, testemunho. A ambos deixamos a nossa gratidão e a certeza da nossa oração neste "natal" para a eternidade. Difícil, mas indispensável para que vidas caídas à terra possam renascer no céu.
Padre José Alfredo