
CALVÁRIO
Uma nação é considerada tanto mais civilizada quanto mais a sabedoria e a eficiência das suas leis impedem que um homem fraco se torne muito fraco e um poderoso muito poderoso.
Primo Levi, Se isto é um homem (1947)
Eu estava em silêncio à varanda norte da casa-Mãe. Ouvi o Pomba, que estava sentado na malha de rede que circunda o lago dos patos, com os dois novos inquilinos que a D. Beatriz nos ofereceu… A pata tinha passado por uma das frestas e veio debicar a terra à procura de outro alimento. Ele, muito prestável, como sempre, apanhou-a e queria devolvê-la ao seu habitat quotidiano. Mas, sentindo o seu calor, pegou-a ao colo. Tratava-a assim com carinho e delicadeza: — Minha pequenina. Estás cansada? Precisas de alguma coisa? Eu vou tratar de ti.
Se isto é um Calvário então estamos a concordar com o testemunho de Primo Levi, italiano que sofreu os horrores do holocausto, e estamos a contribuir para que o fraco ganhe força e o forte, humildade. Os fracos tratam bem os animais. Tratam-nos como gostam de ser tratados.
Se isto é um Calvário então também têm cá lugar o Faro e a Estrela, nossos cães, gaiatos, porque nos foram confiados por quem já não podia cuidar deles! A Julieta costuma dizer: — Já pedi ao padre comida para os bichos. Agora bou tratar do con. A Julieta é da Sé do Porto. Ela cuida bem dos seus amores.
Se isto é um Calvário havemos de ter lugar sempre para o Carocha, nos seus intermináveis solilóquios e quando nos cruzamos sempre dá um abraço apertado.
Se isto é um Calvário posso ter e contemplar um desenho do bom samaritano a transportar um homem meio morto. Posso apreciar o rosto do burrinho. Cansado, desconcertado, sobrecarregado e ainda assim de passo firme.
Às vezes, demasiadas vezes, reconheço, brinco com o Padre Telmo e digo-lhe, quando apreciamos o quadro juntos, que eu sou o burrinho. Ele ri e fala-me das cotovias e de como fazem os ninhos no restolho. E cantam lindamente. Repete a rir ininterrupta e sonoramente.
Vou escutar, por estes primeiros dias de primavera, o Carnaval dos Animais de Camille Saint-Saëns. Um último exercício quaresmal a lembrar que com a Páscoa de Jesus terminaram os sacrifícios animais e brotou, como lume novo, como pedra arrancada ao sepulcro, o desafio de sacrificarmos o nosso próprio egoísmo. O desafio de, perante a Lei, o fraco e o poderoso se humanizarem a partir de uma autêntica fraternidade e sentido de bem comum.
Padre José Alfredo