CALVÁRIO

No passado domingo, dia 19 de Novembro, celebrou-se na Igreja o VII.º dia mundial dos pobres — Nunca afastes de algum pobre o teu olhar e nunca se afastará de ti o olhar de Deus (Livro de Tobias, 4,7). Por iniciativa do Papa Francisco têm-se colocado, novamente, este tema na agenda social e na pastoral da Igreja. Urge sarar com caridade e criatividade os fenómenos que levam à miséria humana: falta de escolaridade, desemprego, alcoolismo, doenças crónicas, violência familiar, abusos vários, desesperança, drogas, corrupção, deportações, emigrações, tráfico de influências, etc. O fim do 2.º milénio e início do 3.º iludiram muitas consciências, até então críticas, de que a economia ultraliberal, a chamada terceira via, acabaria com a fome, a guerra e a pobreza. Puro engano. Celebrámos com fogo e fartura essa ideologia. Esquecemos o Evangelho e aqueles que deram a vida pela Palavra que é Jesus de Nazaré. Interrompemos a leitura e com isso ocultámos a atitude da mulher que tanto exalta a escritura, Maria de Betânia, que ungiu os pés ao Messias para escândalo dos presentes: Quanto aos pobres, vós sempre os tereis convosco, mas a mim vós nem sempre tereis. (João 12,8). É o mestre que o diz a um dos seus discípulos. A verdade é que ninguém quer ser pobre. Nem os pobres! Ninguém quer cuidar dos pobres apenas por cuidar deles. Sempre procuramos algum prestígio numa actividade dessas. Mesmo que seja o prestígio do esquecimento do mundo, da serena paz da noite que permite esta escrita. Mas como diz a mensagem de Francisco, sucessor de Pedro, no nº3 para esta ocasião: Podemos questionar-nos: Donde tira Tobite a coragem e a força interior que lhe permitem servir a Deus no meio dum povo pagão e amar o próximo até ao ponto de pôr em risco a própria vida? Estamos diante dum exemplo extraordinário: Tobite é um marido fiel e um pai carinhoso; foi deportado para longe da sua terra e sofre injustamente; é perseguido pelo rei e pelos vizinhos de casa... Apesar de ânimo tão bom, é posto à prova. Como muitas vezes nos ensina a Sagrada Escritura, Deus não poupa as provações a quem pratica o bem. E porquê? Não o faz para nos humilhar, mas para tornar firme a nossa fé n'Ele.

Há tempos, como noticiámos aqui mesmo, fomos a Trosly, reunir com o Director do Centro Espiritual da Arca, La Ferme, Timothy Kearney. Numa primeiríssima visita fomos ao Santíssimo Sacramento. Celebramos. Mergulhamos naquele santuário, um velho celeiro transformado em capela. No alto um vitral com duas corujas. Foram os irmãos de Taizé que o pintaram e o ofereceram à comunidade. Explicaram-nos: as corujas vêem mesmo na escuridão. Talvez seja isso o único necessário: continuar a ver apesar das trevas que nos envolvem, remata a Mirella, uma sénior da comunidade que suporta as actividades com a sua oração e presença.

Para celebrar esse domingo que antecede o Dia de Cristo Rei e os 93 anos do Padre Baptista fomos do Calvário ao Cabril para o visitar. Não queremos deixar de o olhar! O seu ermitério, o seu silêncio eloquente, a sua tristeza pela ingratidão experimentada aquando da sua condenação, a sua fé e a esperança inabaláveis, ainda que lamentadas. É a cor alva dos seus cabelos e o seu sorriso leve e seguro que no-lo dizem. Apresenta-se como o conhecemos. Sem necessidades. Sem querer incomodar ou que uma visita que lhe fazemos seja incómodo. O Carocha apertou-o contra si, como só ele sabe fazer e disse: paarabéns Paadre Baaptista. Uma pessoa amiga entregou-nos um saquinho com coisas para ele comer. Disse-nos que as entregaria a um pobre. Acreditámos. Ainda que o pobre seja ele.

Estivemos com ele. Almoçámos. Voltamos a falar-lhe e regressámos ao Calvário. Foi um fluxo migratório, uma ida-e-volta de um dia. Como é bom sair do nosso conforto e confrontarmo-nos com a realidade dos que vivem sós e voltar ao nosso quotidiano. Acreditar. Sentarmo-nos à mesa, ao final da jornada, e comer uma canja preparada com carinho. E saber que devemos proporcionar a outros este banquete, sinal da refeição eucarística, de que muitos se excluem, e da comida definitiva e escatológica onde todos teremos lugar. Mesmo os pobres. Mesmo nós!

Padre Alfredo