CALVÁRIO
Passadas as festas de natal, ano novo e reis é tempo de voltar a uma nova normalidade anormal, que a guerra que grassa em tantas partes do nosso mundo global nos imprime. Também em muitas das nossas instituições civis, sociais e religiosas vivemos na e da tensão. Todas as estruturas humanas precisam deste movimento para nos tornar flexíveis e acolhedores, mesmo perante o inesperado, que pode sempre estar à porta.
Um elemento importante para o ano dois mil e vinte e quatro será a memória que conserve o passado e garanta o futuro. No próximo dia dezassete de Junho vão completar-se setenta anos do anúncio que o Padre Américo fez, durante a Festa dos Gaiatos no Coliseu do Porto, da criação do Calvário.
São várias décadas dedicadas à edificação de uma aldeia para doentes. Tempos vários para leitura de muitas biografias, que ficariam silenciadas pela dor e pelo abandono de uma sociedade que se quer evoluída, mas continua, em algumas sombras sociais, a nega aos mais frágeis e procura ocultá-los, ideológica e legalmente, disfarçando a realidade, surrealizando os doentes.
São muitos rostos que ainda podemos contemplar diariamente aqui e que as fotografias antigas nos identificam imediatamente o seu carácter. A doença não mancha a dignidade nem o carácter dos discípulos de Jesus, com quem Ele se identificou preferencialmente. Pelo contrário, impele para os que aqui e agora devemos servir gratuitamente e livremente.
A próxima década no Calvário será fundamental na sua história. No que toca à reabilitação do edificado. No que diz respeito à formação contínua de colaboradores profissionais e voluntários no carisma da Obra da Rua. No que signifique acolhimento de novos doentes pobres, sem família, sem sentido existencial firme e digno. No que remeta para diálogo institucional com outras instituições similares à nossa. Ainda bem que durante décadas o Calvário foi um sacramento pois ajudou a expandir este serviço aos mais indigentes. Quanto bem há em ensinar a fazer o bem, fazê-lo bem feito!
Terminadas as obras em curso de reabilitação do antigo hospital para Estrutura Residencial para doentes e idosos, é hora de mudar os doentes para as novas instalações, garantia dada pela vistoria realizada em Novembro último pelo Instituto da Segurança Social - Unidade Técnica de Arquitectura e Engenharia; Pela Câmara Municipal de Paredes; e pela Delegação de Saúde de Penafiel.
Haverá oportunidade, já estamos a trabalhar nisso, para redimensionar o projecto do Lar Residencial previsto inicialmente e que a visita à Arca de Trosly comprovou como mais prudentes pequenos núcleos residenciais de autonomização adaptados a doentes com necessidades especiais, aproveitando as construções existentes e não edificando nada de raiz.
Haverá que dar um destino à antiga Casa do Gaiato de Beire, por ora parcialmente desabilitada e reabilitar também as antigas instalações agrícolas, procurando tornar o espaço cultivável e que promova o auto-sustento da Casa e uma produção amiga do ambiente na criação de hortícolas e ração animal.
O Calvário foi o lugar da redenção, pela morte. Este Calvário foi e será lugar de salvação para muitos, para todos os que passem, estejam e vivam cá. É um lugar difícil. É preciso cair várias vezes para chegar lá. Mas aqui plantados conscientemente poderemos dizer: tudo está consumado! Tive fome e sede, estava nu e sujo, dormia na rua e sem amigos, estive preso e no hospital. Vieram ter comigo e me recolheram. Amaram-me. É a lição do Calvário no passado, saibamos dá-la agora também, apoiados em outros recursos humanos especializados que só poderão levar este amor carismático à sua perfeição e universalização. Com todos tudo podemos.
O Calvário é um corpo frágil, doente, em mutação, mas ainda vivo. Resulta frágil pelos membros frágeis que congrega. Aqui podemos ver no doente a pessoa de Jesus (centro da Casa): servo sofredor, condenado, morto porque encarnado. É preciso que não se perca a alma do Calvário:
Um lugar onde cada padecente leve, sim, mas não arraste a sua cruz dolorosa. Na verdade, todos compreendemos que se ele é difícil ao incurável não ter onde viva, quanto mais desesperado não ter sítio onde morrer?! (Pai Américo, Coliseu, 1954).
É preciso depois do nascimento renascer, reestruturar, enfim ressuscitar, para isso servem todos os calvários do mundo.
Padre José Alfredo