CALVÁRIO

Atirei para as primeiras horas da noite a escrita. Hoje choveu copiosa e violentamente. Quase não apetece abandonar o fogo na lareira da Casa do Gaiato de Beire, que a persistência do Varito, pelo transporte da lenha, insiste em que o mantenhamos aceso e a crepitar. Vermelho vivo!

A água bate à porta como quem quer entrar. E encontra passagem por alguma brecha da nossa pobreza humana. Assim aconteceu ao longo de todo o dia. E foi um longo dia. O levantar e o pequeno-almoço. A distribuição de tarefas. Os recados que fui fazer à cidade, como sempre pede o Padre Telmo, aproveitando a boleia do Pacheco para um café no Cristo Rei. A ida ao banco e ao registo civil. O correio normal e a compra do jornal. O almoço como pausa da jornada: arroz de feijão e petinga frita. O café. E novamente os acertos nas funções de cada um. Uma consulta, alguma actividade terapêutica — ida dos doentes às termas ou à fisioterapia. A meio da tarde, uma aberta no céu azul permitiu fazer subir a cadeira de rodas do Padre João Rosa ao Espigueiro. Ofereceram-nos um trepador. Os que nos visitam ficam admirados com a técnica! Aí celebrámos a memória de Santo Antão, pai do monaquismo ocidental. Órfão por destino e pobre por opção evangélica. Quem quiser pode vê-lo ainda, retratado, vivo, no mural da Sala do Capítulo do Mosteiro de Singeverga — Santo Tirso, biografado pela traça do artista brasileiro Cláudio Pastor, entretanto, falecido.

Muitas vezes o tempo voa e não nos permite fazer tudo o que pensamos querer fazer. O tempo é um superior a quem devemos obediência! Ainda bem que ele nos retira espaço para o mal que sempre nos circula. E no qual caio tantas vezes. Imensas.

De muitas coisas que nos fizeram chegar no Natal, e que agradecemos, sublinho uma que me confiaram e pediram que recolhesse. O livro DE COMO EU FUI, Crónicas de Viagem de Pai Américo. Junto com o volume vinha outra oferta, graciosa e imperiosa: — Leia. Leia de novo. Todos os padres deviam ler! Assim faço, assim farei. Então deparo-me com esta página:

«Fui a Coimbra. Desta vez tomei o rápido para poupar o Morris. Já vai nos cinco mil e quê. Se não tenho mão, brevemente me verei forçado a pedir outro Morris! Não tinha marcado lugar, mas encontrei um em branco e fi-lo meu. Estava sentadinho e muito regalado quando um senhor novo e bem parecido se senta ao pé de mim: — Good day father. Fiquei admirado. Era um cidadão americano. Sabia tudo da nossa Obra. Falou, falou, falou. Delirou com a divisa de Obra de Rapazes, para Rapazes, pelos Rapazes. Relatou que um dos presidentes dos Estados Unidos decretara uma república do povo, para o povo, pelo povo. Ele disse o nome desse presidente, mas eu não o fixei. A memória desculpa-me, mas a ignorância não. Eu devia saber mais. Mais coisas da História da Humanidade. Tenho pena de não saber.» Ibidem, p.100.

Leio, viajo, vou ao encontro, peço, recebo sim e não, mergulho, sou martelado, penso, idealizo, programo, sonho, realizo, edito, corto… e finalmente acordo. E nada é real! Tudo passa. Tudo evolui e pesamos de acordo com as nossas pequenas medidas: — Vale a pena? Nunca saberemos!

Ontem fui ao Porto e encontrei-me com o Tyler e a Mónica, americanos. Ela de ascendência filipina, a quem oficiei o matrimónio a 17 de janeiro de 2019, há precisamente cinco anos na Igreja de São Lourenço no Porto. Fiquei a conhecer os filhos: Lorenzo, Luca e Bianca. Têm mantido sempre o contacto. Cada advento enviam uma foto de família. Que vai crescendo. Falei-lhes de agora, depois de abandonar a formação sacerdotal, trabalho numa instituição que acolhe doentes, pessoas com debilidade física e mental. Retorquiram: — Dever ser difícil. Não sei, respondo interiormente. Deixaram no ar a possibilidade de os visitar em Atlanta, Estado da Geórgia, EUA. Não sei, volto a responder, agora prudente e silenciosamente.

Já agora Pai Américo, o presidente de quem não fixou o nome foi Abraham Lincoln que no famoso discurso de Gettysburg, Pensilvânia, em 19 de novembro de 1863, apontou aos seus concidadãos com uma república democrática popularizada na sentença: — Governo do povo, pelo povo, para o povo!

Perdoe a minha insolência. Não quero corrigir. Mas aprender. E quem sai de si aprende. E quem procura outros também.

E ele também disse: — I am a slow walker, but I never walk back.

Padre José Alfredo