CALVÁRIO

Como demos nota aqui mesmo, entre 7 e 9 de Novembro de 2023 fomos, eu o Luís Amaral e a Eusébia, à La Ferme, Centro Espiritual de L'Arche em Trosly-Breuil, França.

Recebeu-nos o seu director, Tim Kearney, um irlandês que dirige a instituição, assim como a sua equipa. Voamos do Porto para Beauvais. Foram dias abençoados pelo trabalho, pela convivência e pela experiência de acolhimento que os doentes nos ofereceram, particularmente na casa La Forestière. Jantámos com cinco deficientes profundos e seus assistentes.

Reunimos via zoom com a Caresa, irlandesa, e o Tobias, alemão: dois directores de comunidades L'Arche de distintas partes de França. Fizeram-nos notar que as pessoas que formam as comunidades têm distintos vínculos: doentes, assistentes (programas governamentais), voluntários, assalariados, vizinhança, formação, estilo de vida holístico, etc. As casas estão em permanente diálogo com instituições governamentais. Há segurança no que toca aos contratos de trabalho. Ainda assim impõem-se uma rigorosa gestão de recursos humanos, onde a clarificação dos papéis é fundamental. As casas procuram cada dia estabelecer uma estrutura mais realista, sem perder a alma. O verdadeiro director da casa é Jesus. Apesar disso têm uma carta de valores que orienta a vida comunitária e uma pergunta constante: — Temos de fazer isto? A resposta é que faz o quotidiano.

Do programa que nos propuseram constou a oração da manhã na 4.ª e 5.ª feira e a eucaristia na 3.ª e 4.º feira. Reunimos também com o Padre Phil Kearney, da diocese de Beauvais e assistente espiritual da comunidade de Pierrefonds, localidade que visitámos.

Também reunimos presencialmente com George Durner, membro da Arca há mais de 45 anos. Ele alertava para o efeito provocado pela secularização das instituições: boas ideias podem produzir más práticas. O tempo de mudanças é tempo de oportunidades, são factores favoráveis. Não se pode ceder à estrita observância do que sempre foi feito. Entre eles foi necessário implementar uma organização para os antigos cuidadores, não podendo ser cuidados na casa em que serviram.

O mundo contemporâneo resvala para um perigo: a distância faz perder o contacto humano. É preciso inverter isso. E só se consegue com organização.

No esforço de arrumações e mudanças encontrámos, no antigo escritório do Padre Baptista, um documento que testemunha a passagem da Agnès da Silva pelo Calvário. Esse texto foi publicado na revista L'ARCHE, nouvelles internationales n.º 6 nov/déc 1976, secção Les Conteurs, p.8. Que agora transcrevemos e traduzimos na íntegra.

O Calvário é uma espécie de pequena aldeia em estilo kibutz, onde vivem em pavilhões 20 meninos sem família, a maioria com deficiência mental, e mais de 80 pessoas e crianças, acamados e com deficiências graves. Em 1955 começou com uma quinta mantida pelos rapazes e alguns trabalhadores agrícolas; depois os pedidos tornaram-se urgentes e diferentes entre as pessoas mais rejeitadas… estes pacientes com cancro em progressão recusados ​​pelos hospitais, estes velhos moribundos nos seus casebres de tábuas e barro, estas crianças subnutridas, deficientes e abandonadas… foi necessário conceber espaços de convivência que oferecessem o aconchego de uma família e cuidados nutricionais. Tantas situações extremas bateram à porta do Padre Baptista, este padre fundador cujo coração não para de "bater" e cuja cabeça bem organizada só descansará quando todos tiverem cama, comida, cuidados e amor suficiente para viver e morrer em paz… (o problema é que hoje, depois de 20 anos de perseverança, os pedidos continuam a chegar e a energia começa a esgotar-se…). Assim Jesus acompanha este sacerdote e os 4 leigos saudáveis que o rodeiam em cada uma das "respostas a dar"… Foram montados pavilhões preparados para crianças, adultos, os mais inquietos, os mais calmos, numa notável harmonia estética entre as pedras e a natureza, tudo mantido com o cuidado e uma energia muito alegre… Para quem pode caminhar e trabalhar, uma organização muito simples do dia a dia. As tarefas permitem que cada um, de acordo com as suas possibilidades, sirva aos outros. As pessoas mais sãs fazem as refeições rapidamente e depois vão dar comida aos que estão na cama. Tantas maravilhas nesta harmonia de serviço dos mais pobres pelos menos pobres! O passar dos dias é como um bailado em que o coxo guia o cego e onde a noção de assistência é a realidade reconhecida de que somos complementares. Não há educador, médico ou enfermeiro. Há um padre, 3 mulheres e um homem que ofereceram as suas vidas aos outros e que fazem tudo o que precisa de ser feito dia após dia com a ajuda dos "doentes" que podem… Estou tão impressionada com o resultado… pelo que uma vida dá sem técnica, sem outras especialidades além do amor, com meios financeiros dependentes da Providência, um conhecimento experimental da vida, imaginação e capacidade de organização e sobretudo os olhos do coração para perceber as necessidades reais. Também me impressiona o sentimento tão forte de comunidade (nada a ver com a maioria das nossas comunidades. Não há reuniões excepto a assembleia diária em torno da Eucaristia e todas as noites o tempo de oração). Comunidade forte através do compromisso de pessoas que vivem juntas, algumas há 15 anos… Tensões assumidas num silêncio muito verdadeiro… onde o amor inspira atitudes… Nós aqui estamos longe das técnicas de relacionamento! Comunidade de bens, com uma preocupação de partilha muito simples onde as necessidades não podem ser criadas porque a vida se reduz ao essencial… o cansaço está sempre à porta… faz parte da vida… a alegria também, risos e canções… Portugal também é isso… uma certa resignação, por vezes até uma filosofia de vida que se enraíza numa fé muito profunda. Durante as 2 semanas aqui passadas, 2 homens regressaram ao Pai, um muito velho, o outro, jovem, com um cancro facial muito doloroso… O Padre Baptista cuidou dele com coragem até ao fim… Carregámos o seu corpo para o pequeno cemitério do Calvário onde já descansam 150 homens, mulheres e crianças que seus irmãos ajudaram a lutar para viver até ao último suspiro.

Não, não quero amar este lugar por obrigação. Em nenhum momento me senti na obrigação de dar um sorriso, uma mão, um olhar… tudo saiu de mim tão naturalmente nos momentos de cansaço como nos outros com uma paz e um conforto extraordinário em troca! Às vezes pergunto-me por que chamar de Calvário a um lugar de vida. Descubro o seu significado… quando me detenho a contemplar Jesus na sua Cruz… o seu corpo tão humano… as suas feridas… a tristeza do seu rosto… sinto crescer dentro de mim esta compaixão que Ele colocou no fundo do meu coração. Nossos corações… esta compaixão pelo mundo, pelo homem livre, livre para dar a vida, livre para dar a morte… Encontro também diante deste rosto, um esboço de resposta às questões que o encontro com estes corpos distorcidos, com estes corações feridos, com a injustiça, com a violência… o seu olhar de amor, de ternura, para além da morte. Que força! "Ó Calvário"… porque não adianta imaginar outro mundo que não seja um mundo na cruz… porque a mentira das palavras muitas vezes faz um mal maior do que alguns pregos… porque a verdadeira alegria nasce na manhã de Páscoa, depois na partilha até à morte, da condição humana… O Calvário é um testemunho de esperança para os cristãos de hoje. É um lugar escondido onde grandes coisas acontecem. É necessário que permaneça oculto para continuar a tocar o que deve permanecer mais escondido nas profundezas dos nossos corações.

Este precioso testemunho, tão silencioso e tão sonoro, ajuda-nos a compreender e a interiorizar a extraordinária herança recebida. O singular tesouro que o Calvário corporiza impede-nos de desistir e obriga-nos a perseverar. Perseverar significa — significou sempre no Calvário — partilhar a nossa vida com um universo de pessoas com histórias e culturas, capacidades e idades muito diversificadas. Na medida em que cada um participa nesta vida de Família de acordo com as suas possibilidades, facilmente se compreende que, na verdade, não há uns que ajudam os outros, mas todos tratam de todos, complementando-se na partilha de si e das suas competências. A visita à Arca possibilitou, assim, uma revisitação das origens do Calvário, convencendo-nos que nada mais devemos fazer do que ser fiéis a essas origens e àquilo que elas revelam de mais fundamental, ou seja, estar sempre no presente e agir em conformidade.

Para o nosso Calvário rascunhamos um esquema de vida em várias dimensões concêntricas (CUIDADO HUMANIZADOR PRESTADO AOS DOENTES) — Atendendo ao passado (CARISMA); Actualizando o presente (EVOLUÇÃO NA PRESTAÇÃO DE CUIDADOS DE SAÚDE); Preparando o futuro (ANÚNCIO DO EVANGELHO A PARTIR DA FRAGILIDADE). Queremos continuar a viver o e no Calvário a partir de 4 pilares

VIDA COMUNITÁRIA — Trabalho em equipa (doentes, cuidadores, membros do Calvário, assistente social, médicos, enfermeiro, voluntários, outros profissionais de saúde); sociabilização (plano de actividades); gratidão pela vida.

SUSTENTABILIDADE — Trabalhos agrícolas; actividades terapêuticas; angariação de fundos; caridade.

LITURGIA — Oração da manhã; eucaristia; terço; adoração & completas; assistência espiritual.

HOSPITALIDADE — Visitas e acolhimento; programas de formação; discernimento; sinodalidade; diálogo institucional.

Padre José Alfredo