CALVÁRIO

Por estes dias recebemos no Calvário o Venâncio e o Jorge Domingos, vindos da Casa do Gaiato de Benguela. O primeiro ficará a trabalhar cá e a fazer curso de mecânica. O Jorge Domingos vai para Miranda do Corvo para fazer o curso de contabilidade. Na ida a Miranda, a 25 de Abril, subimos ao Cabril para uma visita ao Padre Baptista e o convidar para a festa no Coliseu. Convite que recebeu com muita alegria. Rapidamente começaram a saltar-lhe memórias do passado: o início após a morte do Pai Américo. A formação em Cotolengo, na Cidade de Turim. A multidão de doentes que resgatou de condições desumanas. A "perseguição" ao modelo de funcionamento do Calvário – de doentes, para os doentes pelos doentes, com apoio de profissionais e uma legião de voluntários. A condenação e o indulto. Apesar de tudo mantém a esperança e um sorriso de confiança verdadeiramente ímpares. Sente-se desterrado! Tentamos que ultrapasse esse sentimento, que entendemos.

Terminei recentemente de ler uma biografia de Cicely Saunders, por Shirley du Boulay, Editora Palabra, Madrid 2007. A dama do Império Britânico foi a fundadora do Movimento dos Hospitais de Cuidados Paliativos. Ela foi enfermeira, sua formação inicial, por ocasião da segunda guerra mundial. Problemas de saúde na coluna levaram-na a fazer o curso de assistente social e mais tarde, porque sentia como vocação o acompanhamento integral dos doentes, tornou-se médica. Sempre com o sentido de velar pelos doentes. Conseguiu que a sua intuição de controle da dor se tornasse disciplina médica e assim aliviar a dor total dos doentes em fim de vida. Concedendo-lhes condições para viver a morte com dignidade humana. Entre os princípios base dos cuidados paliativos apontava-se a integração entre todos os agentes: doentes, pessoal médico, cuidadores, visitantes, família. Todos têm idêntica importância, não devem surgir barreiras divisórias entre eles. Ela própria morreu no Hospital que criou em Londres, São Cristóvão. Pediu que no serviço religioso, por ocasião do seu velório, fosse tocada a peça de Vaughan Williams, A Ascensão da Cotovia, a partir de um poema de George Meredith.

A este propósito partilho uma história que encontrei na internet. Conta-se que um velho eremita há muito abandonara o contacto com os homens, descontente com as maldades por eles praticadas, preferindo a companhia da natureza, na sua pureza e ingenuidade. Entre todos os animais presentes na floresta, uma cotovia tomara-o como companheiro de todas as horas. Mesmo nos intensos períodos de suas meditações ela ficava inerte sobre uma das pedras da caverna, fitando-o, como se fosse capaz de compreender o que lhe ia pela mente. Em certa ocasião, o eremita foi procurado pelos emissários de um nobre, pois o filho encontrava-se muito doente, às portas da morte. O homem solitário e a cotovia acompanharam os mensageiros imediatamente, não tardando a chegar à mansão do nobre, onde o filho agonizava, rodeado por quatro impotentes médicos. De pé na porta do quarto, o eremita observava a cotovia que se apoiara no peitoril da janela e fitava demoradamente o pequeno enfermo. Repentinamente ouviu-se a voz modulada do eremita avisando a família do menino de que ele iria sobreviver. Estupefatos, os médicos riram-se daquele camponês grotesco de barbas compridas, cabelos brancos e unhas enormes que, pensavam, se queria mostrar superior a eles. O menino abriu lentamente os olhos e fitava a ave na janela, abrindo um largo sorriso, pedindo algo para comer. Antes que todos se apercebessem, o eremita desapareceu, seguido de sua pequena ave, embrenhando-se na escuridão da noite. Uma semana depois, estando o pequeno totalmente restabelecido, uma comitiva parou na entrada da gruta, onde vivia o homem solitário e sua ave. O nobre ofereceu ao eremita inúmeros presentes, que ele prontamente recusou, dizendo que não fora o responsável pela cura do menino, mas, sim, a cotovia. E pacientemente explicou-lhe: — A cotovia é um pássaro muito sensível e sábio. Ao ser colocada perto de um enfermo, se ela não o fitar, significa que não há esperanças para ele, mas, se o mirar, significa que ele irá restabelecer-se. Poucos sabem que essa ave, através do poder de seu olhar, ajuda na cura das pessoas, assim como o fazem tantas outras. É uma pena que tais seres sirvam de alvo para homens insensíveis que desconhecem as inúmeras divindades que habitam a natureza e seus mistérios. E assim falando, o eremita pediu licença para mais uma vez se retirar do convívio dos homens.

A função do Calvário continua a ser prestar atenção a cada doente com sensibilidade e sabedoria até que a morte serena e santamente nos visite. Entretanto vivemos com pureza e sonho.

Padre José Alfredo