CALVÁRIO

Este será para sempre o lugar do meu repouso, aqui hei de habitar, porque assim o desejei.

Abençoarei, sim, abençoarei as suas provisões, saciarei de pão os pobres. Salmo 132, 14-15

Bíblia, Os Quatro Evangelhos e os Salmos,

Conferência Episcopal Portuguesa,

Lisboa. 2019

O Salmo 132 desenvolve o pacto entre Deus e David, rei de Israel de acordo com o Segundo Livro de Samuel, capítulo 7. É um texto real e messiânico que alude ao oráculo de Natã ao jovem pastor soldado. Aquele que foi ungido e sobre quem recaíram as promessas para uma dinastia com futuro: uma grande descendência e a edificação de um templo. Face às situações críticas vividas nesse século I antes de Cristo recorda-se a promessa de David e o juramento divino. Nesta memória cresce a esperança e a confiança no momento presente: a instalação da capital em Jerusalém; a reunião de todas as tribos sob um único líder; a elevação do monte Sião como lugar privilegiado de revelação; e projecto de um lugar a construir para IHWH. São Frei Bartolomeu dos Mártires traduz assim o v. 15 deste mesmo salmo, o que torna realista a história vivida e a realizar, um realismo clássico porque conta com a ação do Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob, o Deus vivo que não deixa ninguém esquecido na morte:

Tornarei a sua colheita abundantíssima, de forma que até os pobres sejam saciados.

Comentários aos salmos, Vol. X.

Biblioteca Verdade e Vida, 14.

Fátima 1991.

Como disse o autor do Eclesiastes há tempo de derrubar e tempo de construir (3, 3); tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las (3, 5); e ainda o que ganha o trabalhador com todo o seu esforço? (3,9). Não sabemos qual o mais difícil: demolir ou edificar! As imagens que nos assaltam diariamente mostram-nos os horrores da guerra na Ucrânia, particularmente na cidade de Kharkiv; e na Palestina, especialmente na Faixa de Gaza, encurralados em Rafah sem água, privados de alimento, a dormirem em tendas, sem passagem segura para o Egipto. Quem já foi a África também não esquece o abandono das construções do passado colonial e a desorganização das cidades actuais com os seus musseques e as imensas multidões que os habitam e enchem as ruas em trânsito, no comércio e na mendicidade.

Também é notícia em Portugal o tema da habitação ou a falta dela para estudantes, jovens trabalhadores, idosos, imigrantes, sem-abrigo e muitos outros. O elevado custo da habitação e a mudança da tipologia da habitação tradicional para o alojamento local nas grandes cidades, introduziram imponderáveis para quem busca uma justa habitação condizente com a sua dignidade humana. Nem o governo nem os particulares conseguem resolver os problemas que se arrastam há décadas. Não é produzir uma legislação a correr e ao sabor de uma economia capitalista que privilegia os vistos Gold para quem tem rios de dinheiros e pode adquirir mansões de vários milhões de euros, muitas vezes usadas apenas para férias ou celebrações, em detrimento da casa para jovens casais, por exemplo, que não encontram um caminho eficaz para a habitação! Muitas vezes, contornando os planos directores municipais, constrói-se em locais de reserva ecológica e natural. O capital tudo pode! O poder tudo permite! Ao invés os pobres têm de recorrer a empréstimos com taxas de juros instáveis para conseguirem comprar uma primeira e única habitação. Paradigmática esta ambivalência.

Há quatro anos que em Beire se iniciaram as obras de requalificação do edificado, pela mão do Padre Fernando e do Arquitecto António Seca. Está pronta para as mudanças a ERPI – estrutura residencial para pessoas idosas e doentes. Foi pensada e executada para os doentes que temos neste momento (20) e para os que o Instituto da Segurança Social, através dos seus técnicos, retirou em 2018 (20) e possam regressar, mais outros pedidos de acolhimento a quem poderemos atender (5), além de alguma vaga para a Segurança Social no âmbito dos acordos de cooperação que estabeleçamos.

Seguem-se as obras na Casa Mãe, para acolhimentos dos sacerdotes e voluntários dedicados ao Calvário, e obras do LR – lar residencial para pessoas com deficiência intelectual, na forma estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS – outubro de 2004). Faremos dois polos, com a mesma lógica de reabilitação do edificado. Estruturas com capacidade para 15 camas (9+9) e que mantenham o desenho originalíssimo da aldeia de Beire, bem como o seu espírito de envolvência natural e ecológica, primeiro e maior elemento de cura.

Teremos de renovar a lavandaria e ampliar a cozinha que terão de ser deslocada para a parte baixa da quinta, edifício das antigas oficina, garagens e arrecadação. Este projecto está a ser orientado pela Arquitecta Margarida Osswald e acompanhado pelo Arquitecto Paisagista Gonçalo Andrade, bem como pela participação do Engenheiro Eletrotécnico Alexandre Martins e do Engenheiro Civil Nunes da Silva. São processos complexos e dispendiosos a que teremos de corresponder com os meios necessários, a angariação de fundos é uma urgência. E que esperamos não nos falte a Providência.

Além destas obras está a ser implementado um projecto de produção eléctrica a partir de energias renováveis, painéis fotovoltaicos, que permitirão uma diminuição na factura energética em cada mês.

Não se trata de edificar templos mundanos, mas lugares de acolhimento e lugares acolhedores para quem tem maior necessidade deles: doentes pobres sem rectaguarda familiar. O nosso compromisso é com a história passada e recente do Calvário e por fidelidade ao espírito e carisma que aqui reina. É preciso projectar muito e bem, investir criteriosamente, teremos muito trabalho e muitas preocupações, até que possamos dar resposta a tantos e tantos pedidos de acolhimento, que não param de nos fazer chegar. Situações complexas a que não somos insensíveis, embora não tenhamos respostas prontas na algibeira.

O fruto que almejamos é esse: poder dar um tecto e a caridade a quantos se vêem privados deles e assim continuar a ser Calvário, lugar de cura e de redenção, celeiro para quantos estão jogados nas margens da sociedade, pisados antes de amadurecidos, escondidos dos grandes holofotes sociais, mas, acreditamos, olhados pelo olhar misericordioso de Deus e daqueles que se dispõem a servi-los livre e pobremente. É uma obra de salvação esta obra material, mas que aponta para uma espiritualidade do quotidiano onde se encontre um lugar onde reclinar a cabeça (cf. Mateus 8,20) e render o espírito (cf. Lucas 23,46). Jesus encontrou-o na hospitalidade dos amigos (Lucas 10,38) e na cruz que os seus algozes prepararam (Lucas 23,33). Nós queremos proporcioná-lo aqui e agora e de forma pronta e competente!

Padre José Alfredo