CALVÁRIO

O mês de Setembro foi um mês de lutos e lutas. Perdemos para Deus o Padre Acílio (13.09.2024), vítima de uma queda doméstica e do seu sentido de missão até ao último instante e na minha família de sangue perdemos o nosso pai Joaquim (21.09.2024), que foi derrotado por uma infeção biliar recorrente e que no último internamento, no Hospital Pai Américo, se generalizou e atingiu outros órgãos vitais.

Soube da notícia da hospitalização do Padre Acílio pelo Padre Telmo, que recebeu a notícia por um telefonema do Padre Baptista, já noite, quando víamos TV, logo confirmada pelos padres da Obra da Rua. Reveniram-nos que estava internado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, com prognóstico reservado devido a um traumatismo craniano. Só pude rezar por ele e pelo pessoal médico que o acompanhava. Acabou por falecer num par de dias depois.

A notícia da morte do meu pai chegou-me pelo meu irmão mais novo, estava eu no Calvário a tratar de algumas mudanças relativas ao novo edifício, estava com doentes e amigos da Casa. Falei ao meu pároco, Padre Correia, que diligenciou tudo relativo ao velório e ao funeral, a quem agradecemos profundamente a dedicação paroquial sem distinções.

Fomos a Setúbal uma pequena representação das Casas de Paço de Sousa e de Beire ao funeral do Padre Acílio, ultimamente dedicado ao Património dos Pobres. A Sé estava cheia de amigos. Presidiu o Cónego Lobato, que na homilia pincelou com mestria a rica e, por vezes, controversa personalidade do Padre Acílio. Alguém de nós terá comentado que muitos dos pobres a quem serviu generosamente nas duas últimas décadas não apareceram. Talvez! Mas tinham que aparecer? O bem feito não exige declaração de interesses! Era esse o lema do Padre Acílio. Recordo a visita que eu, Padre Rafael e Padre Telmo lhe fizemos em Maio de 2023 no andar para onde se recolheu, depois de lhe ter sido pedido que deixasse a Direcção da Casa do Gaiato de Setúbal. Estava a viver a condição de pobre, como disse que queria viver, e perto da Igreja do Carmo onde assistia espiritualmente a comunidade cristã, sobretudo na actualização diária da eucaristia. A última vez que estivemos presencialmente foi um Junho (18-20), na reunião em Fátima para retiro sacerdotal e para a eleição da Direção da Obra. Sempre me acolheu. Uma vez, das várias que o convidei a vir descansar e deixar-se cuidar no Calvário, me disse para não brincar com ele. Que não podia vir para o norte e deixar os seus pobres abandonados. Respeitei e não voltei a falar-lhe disso! Mas teria sido bom tê-lo connosco.

O funeral do nosso pai foi em Seroa — Paços de Ferreira, para onde ele foi viver em 1957 depois do serviço militar que cumpriu em Mafra. Somos seis irmãos, três noras, dois genros,åoito netos e dois bisnetos. A minha mãe, Ermelinda, com demência profunda há vários anos não tomou conta da realidade. Foram muitos os amigos que nos saudaram na dor e na esperança. Agradecemos a todos e particularmente aos Senhores Bispos do Porto. O nosso pai sempre nos dizia que não se chega ao céu só com oração e que quem reza por contas desconfia de Deus. Ele foi um senhor humilde, nada ambicioso e amigo de ajudar. Eu comentei no funeral que esse amor à pobreza, que ele nunca recusou, me inspira a estar na Obra da Rua. Foi um homem de trabalho e de paz nas relações que cultivou, apenas alguns episódios de injustiças que lhe moveram lhe tiraram a serenidade, mas que ele enfrentou com realismo.

O mês de Outubro será um mês acção de graças e mais lutas. No próximo dia 23 de Outubro, uma quarta-feira, procederemos à bênção das obras realizadas, com a presidência do Senhor D. Vitorino Soares – Bispo Auxiliar do Porto, e os doentes passarão a habitar o novo edifício, uma casa renovada para eles.

No último jornal o Senhor Padre Júlio escreveu que a propósito do Património dos Pobres este ficará adstrito a cada um dos padres. Eventualmente poderíamos ir mais longe e repensar o papel da Obra da Rua quando ao tema da habitação para quem não tem habitação digna, sejam estudantes sejam famílias dependentes ou em desagregação, idosos obrigados a deixar as suas casas arrendadas para serem destinadas à especulação imobiliária. A partir do Património da Obra apoiar o Património dos Pobres, procedendo a um levantamento de todas as casas construídas, clarificar situações dúbias quanto à sua legalização, apoiar a reabilitação de algumas e proceder à construção de habitação social sustentável e economicamente viável. Desde Beire, como já demos conhecimento aqui mesmo, temos apoiado uma voluntária no seu serviço a alguns sem abrigo na zona da Boavista. Sonhamos um dia poder ter um espaço no centro do Porto, como o que foi criado pelo Papa Francisco em Roma, lugar para a higiene, para a alimentação, para a escuta de tantas histórias que atiram as pessoas para a berma de qualquer rua movimentada, quase ninguém pára. Um sonho e um pedido que outros se associem com alguma ajuda, humana ou material.

No discurso dos 114 anos da implantação da primeira república em Portugal o nosso Presidente, Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que temos 2 milhões de pobres em Portugal, um quinto da população! Imagine-se. Quando olharemos para eles não como um número, mas como cidadãos de um nobre povo? Quando colocaremos as nossas instituições políticas, sociais e eclesiais ao serviço da sua humanização estrutural. Quando deixaremos de nos servir dos pobres para manter um discurso social que tranquilize a nossa consciência e manter uma economia que mantém tantas vezes as pessoas em situação laboral precária: salários mínimos, inflação máxima, despedimentos, contratações ao abrigo de regras que defendem, não raras vezes, só uma parte dos interessados. Mas tudo abrigado pela lei! Cumpra-se ou pereça-se! Ou então evangelize-se este tempo, evangelize-se a ganância!

Padre José Alfredo