CALVÁRIO

Quem plantou o ouvido não ouvirá?

Salmo 94, 9

«[...] aquilo que a gente aqui prega não é de efeitos imediatos. 

Não pode ser. Mais tarde. A memória

guarda e o espírito em qualquer altura vivifica.» 

Isto é a Casa do Gaiato, vol 2, 2.ª edição; Paço de Sousa, ECG, 1971; p. 78.


A Ascensão de Jesus prepara-nos para o final do tempo pascal. As aparições do ressuscitado, relatadas nos evangelhos (cf. Mateus 28, 1; Marcos 16, 1; João 20, 1), indicam a vida nova de que foi revestido, após a sua paixão e morte. Muitos queriam um cadáver, que não incomodasse, mas alguns deram conta de um corpo glorioso, que empolga os corações. O seu trânsito pelo mundo está prestes a terminar. Jesus prepara os discípulos para a engenhosa missão de evangelizar. Levar a todas as partes e a todas as pessoas a boa nova da salvação.

Há um segredo na vida da Igreja que depende deste corte do Jesus terreno com os seus discípulos e amigos. Esse segredo é a comunicação. Jesus foi a Palavra anunciada à humanidade pelo Pai. Palavra encarnada, palavra feita vontade e verdade. Palavra que criou comunidade. Palavra que, a partir de então, será assistência do Espírito Santo. Palavra, memória e recordação, mas também projecção e futuro. Os amigos de Jesus, informados pelo mandamento do amor sem limites, são pessoas de palavra. São pessoas que cumprem o que ele ensinou por gestos e por uma nova semântica: o amor não é um fardo, retórica velha e condenatória, mas asa leve e perene, desejo de habitação e perdão. Jesus é a palavra para quem quer ouvir: se te pedem a capa dá também a túnica (Mateus 5, 40). Argumento que corta com a sentença: olho por olho dente por dente (Levítico 24, 20).

Nas instituições da Igreja, para nos renovarmos, devemos aprender a comunicar melhor. Ser fiéis ao passado e aos fundadores, mas seremos atentos à realidade presente e, sobretudo, preparamo-nos para o futuro. Sem comunicação não há vida e sem vida não há missão.

O Papa Francisco recorda isso mesmo na mensagem para o dia das comunicações sociais deste ano, com data de 24 de Janeiro de 2022, memória de São Francisco de Sales, quando escreve sobre o sentido de Escutar com o ouvido do coração.

Também na Igreja há grande necessidade de escutar e de nos escutarmos. É o dom mais precioso e profícuo que podemos oferecer uns aos outros. Nós, cristãos, esquecemo-nos de que o serviço da escuta nos foi confiado por Aquele que é o ouvinte por excelência e em cuja obra somos chamados a participar. «Devemos escutar através do ouvido de Deus, se queremos poder falar através da sua Palavra». Assim nos lembra o teólogo protestante Dietrich Bonhöffer, na obra Vida em Comunidade - Sígueme, que o primeiro serviço na comunhão que devemos aos outros é prestar-lhes ouvidos. Quem não sabe escutar o irmão, bem depressa deixará de ser capaz de escutar o próprio Deus.

Assim devemos fazer no Calvário. Aprender a ouvir, sempre, a expressão de Jesus nos lábios dos que aqui residem: tenho sede, tenho fome, tenho frio, tenho medo, não tenho família... Que sede? Que sedes? Dos doentes e nossas, pois não é fácil reconhecer que se tem sede. Porque a sede é uma dor que se descobre pouco a pouco dentro de nós, por detrás das nossas habituais narrativas defensivas, assépticas ou idealizadas; é uma dor antiga que sem percebermos bem como encontramos reavivada, e tememos que nos enfraqueça; são feridas que nos custa encarar, quanto mais aceitar na confiança (José Tolentino Mendonça, Elogio do Sede - Quetzal).

Padre José Alfredo