DESDE ANGOLA
Fez por estes dias três meses que cheguei à Casa do Gaiato de Malanje. Vim para apoiar o Padre Rafael nesta missão, que ele leva por diante há mais de uma dezena de anos. Tinha intenção e autorização superior para conhecer mais profundamente a Obra da Rua em África e garantir uma presença presbiteral e paterna na ausência do Pai da Casa, que saiu em finais de Outubro para tratamentos de saúde no Porto e visita à família de sangue em Saragoça. Aproveitei a oportunidade para descer a Benguela e participar na celebração do primeiro aniversário da morte do Padre Manuel António.
Confidencio aqui três tentações e mais uma. Em que me precipito. Inevitavelmente e sem Graça. A primeira é a de olhar África, e particularmente Angola, com olhos europeus. Aqui as paisagens naturais e humanas são distintas. Têm outras cores, ritmos, formas. O clima é generoso, ainda que às vezes roce o dilúvio. As pessoas riem e choram no mesmo instante. Os caminhos são longos até onde queremos chegar. Olhar bem significa ter tempo, ter paz, ter fé. Aqui posso perder a fé nas minhas certezas. E como seria bom que acontecesse.
A segunda tentação é a de querer mudar tudo. Certamente há coisas que não estão bem. A atrocidade da fome, a vileza da corrupção, a violência sobre mulheres, crianças e sem abrigo. Não medimos a fome, nem pesamos a corrupção, tampouco abolimos a violência física e psicológica sobre indefesos. O Padre Rafael ensinou-me, logo de início, que o mais importante é acompanhar. É preciso não ceder à tentação do activismo. Fazer por fazer, para que nos reconheçam o mérito. Saber ensinar a fazer é a pedagogia certa, oportuna. Também aqui posso cair na tentação de dar por perdido o tempo, porque não fiz nada. Como será oportuno reconhecer isso mesmo.
A terceira tentação: acabar com a pobreza. A Casa do Gaiato de Malanje, como pude comprovar em tantos antigos e actuais rapazes, prepara as pessoas para tomarem decisões justas. Alguns não o conseguem totalmente, outros sim. Entretanto, muitos vão vivendo e inspirando o ambiente que envolve a sociedade, com muitas dúvidas e esperanças, com alegrias e derrotas. O mais importante será não desistir, digo eu. Esta obra pede um compromisso profundo e absoluto com os mais pobres. Alguém dizia que não basta servir os pobres, é preciso amar a pobreza. A tentação de sermos auto-suficientes é grande e também eu posso cair nela, mesmo estando entre aqueles que Jesus mais ama. Entre os que valem não pelo que produzem mas porque também são filhos de Deus, ainda que órfãos, alguns de pais vivos.
No mês de Dezembro li o título África minha, da Baronesa Karen Blixen (Publicações Europa América) e das suas aventuras na fazenda Ngong, perto de Nairóbi, Quénia. Estava no profundo século XX, no dealbar e desenrolar da segunda guerra mundial. Impressiona a identificação que foi capaz de estabelecer com um povo e uma cultura tão diversos e simultaneamente a decisão de ter de voltar as costas a tudo o que construiu porque a natureza assim ordena. A morte dos amigos, a morte das culturas, o abate dos animais, a vida perene da própria morte. O instinto de auto-preservação.
Mas a maior de todas as tentações é não nos deixarmos tentar por nada nem por ninguém.
Na obra El cristiano e la angustia (Caparrós), Hans Urs Von Balthasar definia o medo como o abandono dos auxílios da reflexão. Que estes nunca faltem. Para que continue válido o apelo de Jesus aos discípulos após a multiplicação dos pães: Sou eu. Não temais. (João 6, 16-21)
Padre José Alfredo