DOUTRINA

Desde que me tornei sacerdote nunca mais deixei de servir

Venho agora mesmo de lá; melhor, vimos, porque o Júlio também foi. Eu tinha celebrado na Igreja dos Congregados e depois fui ao «Imperial» pelo café e depois fui ao cambista Cândido Dias trocar por notas de Portugal uma data delas do Brasil e assim  munido, dirigi-me à beira-rio quando, no caminho, encontro o Júlio. Fomos os dois. Eu gosto de levar comigo testemunhas.

Era de manhã. Os passeios regurgitavam. Olhava-se das portas. Éramos perseguidos. Na primeira casa aonde entrámos, ela é a Doente e o marido estava ao pé. Acabaram-se-lhe os nove meses da Previdência e a Conferência de S. Vicente de Paulo fala-lhe, semanalmente, com 6$00.

É uma visita farta e consoladora. «Isto também é das senhoras da Conferência», e apontava um chambre de flanela verde com que se cobria. «Eu só tenho ossos» - e enquanto dizia, preparava-se para me mostrar o corpo. E eu disse-lhe que não, por amor do Júlio ali presente. Estes meus rapazes são dum mundo novo; duma doutrina nova. Estão cheios de sangue e de vida. Não quero que eles vejam ossos.

Despedimo-nos. O marido, ainda novo, acompanhou-nos até à porta. Um nadinha abaixo sai-nos uma mulher a pedir que entrássemos em sua casa. Não era bem por ela, mas tinha recolhido uma rapariga que ontem chegara da maternidade e queria que eu a fosse ver. Fui. Entrámos todos e daí a nada, Júlio sai pela porta fora com as mãos no nariz... Eu não. Eu ando afeito. Desde Julho do ano de 1929, em que me tornei sacerdote, nunca mais deixei de frequentar e servir o quinhão que Deus me destinou pela Sua misericórdia. Ouvia-se a voz da recém-mãe e os gritos do filho; mas não se enxergava uma coisa nem outra, pela escuridão. Demorei-me alguns minutos. Soube que pagava de renda 10 tostões por dia e que uma vizinha lhe dava todos os dias um cantarinho de água. Fora, na alcova, era uma sala espaçosa, com muitos catres em pé. Num dormia um velho. Noutros estavam crianças. Soube que os espaços, aonde as camas estão, são alugados por um tanto e ao dia, às pessoas que os requerem. Isto é o Barredo.

Saí. Dantes, em Coimbra, andava sempre munido dum frasco de álcool e à saída de lugares assim, esfregava as mãos e a cara e a cabeça. Agora não. Agora estou cansado e não se me dá de acabar. Ando morto por morrer. Quando aqui há tempos soube da morte do Padre Flanagan, pousei o jornal e fiquei a cismar e a cismar e a cismar. Quanto não teria aquele homem sofrido! Ele já se foi e eu ainda por cá ando...

Júlio estava no mesmo sítio. Deu-me o braço. Caminhávamos juntos. Entrámos noutras casas do mesmo estilo. O rapaz, fulgurante como é, ia-me dizendo que os senhores que fazem discursos acerca do que está feito, haviam de pisar e cheirar estes caminhos, para serem mais sóbrios e mais humildes. Eram onze horas. Júlio foi dar voltas e eu também. Era uma da tarde quando nos sentámos a comer e pouco depois estávamos em Paço de Sousa. Júlio, instalado no «Another», não se cansava de lembrar e relembrar o que naquela manhã ouvira, em uma das nossas visitas. Foi assim: Na casa aonde esgotei o dinheiro, gemi que não tinha mais e que também poderia vir um dia a cair naquela miséria. Nisto acode o grupo: «Não, Padre. Nunca. Nós não deixamos».

in O Barredo, pp 106-109.

Pai Américo