DOUTRINA

Outro caso

Vinha a dizer em o jornal daquele dia. Era o Comércio do Porto. Custa-me um poder de dinheiro a sua assinatura; mas quê? Já propus permuta e disseram-me que não, por causa não sei de quê. Pois vinha lá a falar de «Proezas de gatunos». Comentava dois ataques audaciosos por dois matulões (lá estava assim) de vinte anos, cometidos em plena rua e pleno dia; e acabava: «Confiamos na boa vontade de quem superintende para que a cidade seja limpa de vadios e ladrões».

Não sei bem porquê, eu nunca leio estas coisas como elas vêm na chamada grande Imprensa. Nunca! Tenho outros conhecimentos. Vou logo às fontes de onde o mal promana e é ali, nas fontes, que eu o vejo. É de lá que o puxo para que os mais também o vejam.

Ora escutemos: Era de uma vez eu a pedir numa igreja. Na sacristia aparece um rapaz e um senhor com ele a contar a história. É o estafado conto do rapaz que sai do asilo aos tantos. Este saíra aos doze. Hoje, tem catorze. O que ele passou durante estes dois anos, sei, mas não digo. É indecoroso para nós. O que eu pretendo é que ele esqueça, perdoe e ame. Mas continuemos: Mal entrei, vêm os dois ter aonde a mim, senhor e rapaz. Eram, até, dois senhores.

- Que não. Não posso. Não tenho lugar. As casas de assistência que levem até final a sua missão. Que não há direito ser eu o pião das nicas.

- Ande lá. O rapaz não tem ninguém. Dorme nos albergues.

Dei mais uma investida: - Que não. Não senhor. No Porto existe um Curador de Menores. Vão a ele.

Os dois senhores tiveram pena de mim e aceitaram o alvitre.

Foram ao Curador.

- Só por um processo. É preciso haver crime.

O órfão, cansado de penar, veio aqui ter pelo seu pé. Vinha descalço, esfarrapado. Olhava-me sem dizer nada.

- Que queres que eu te faça?

- Tenha pena de mim. Eu não quero ser gatuno! O «Periquito» passava ali. Entreguei-lhe o mártir.

- Rapa, dá banho, veste. Mostra-lhe a cama e o refeitório.

O Farrapão vai todo contente ao lado do «Periquito». À noite, escolhe o ofício: alfaiate.

Hoje encontra-se no que é seu. Chama-se o «Directo», com perdão do senhor que de uma vez me ralhou por causa das alcunhas. Chama-se o «Directo». Porquê? Foi o «Morteiro» quem m'o disse: «É que ele passou directamente da rua prà oficina!»

Alguém que nos enviou uns tantos metros de burel, da Guarda, vai vestir o Escorraçado. Os companheiros andam interessados em fazê-lo, ao pé do mestre, já se vê. Que o senhor, da Guarda, se regozije.

Ora aqui temos nós uma fonte dos tais «vadios» e «ladrões», de quem o senhor da notícia, n'O Comércio do Porto, deseja ver a cidade limpa. Ele e nós. Todos nós.

Enquanto houver tabelas nos modos de fazer assistência, temos de contar com legiões de vadios nas ruas, a pedir contas à gente...!

E mais nada.

PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, 1.ª ed., 1986, pgs 131-133.