DOUTRINA
Responsabilidades
Pela segunda vez, e com muito interesse, um dos meus filhos veio ao pé de mim mostrar a ferida que tem no peito. É enjeitado. Soube agora do pai. Quer que ele o tome por filho. Eis a ferida.
Este mancebo encontra-se bem colocado. É casado. Tem o seu lar. A vida dele é uma verdadeira promessa. Ora como o pai, ao que se sabe, é um homem desmantelado, eu arrisquei:
- Que te importas de um pai assim? Ele insiste:
- Quero que me perfilhe. É a sua obrigação. É o seu dever. Eu desejo ter um pai.
Eu admirei as palavras fortes e honradas do Enjeitado.
Merecem um comentário. Vamos a ele:
Os senhores que nesciamente contraem responsabilidades desta natureza, não suspeitam da chaga que abrem para ficar toda a vida no coração das vítimas que fazem. «Quero um pai.» Aonde a lei facilita, é preciso que a consciência dificulte. À fraqueza natural da mulher, levante-se a força do homem. À voz da carne, responda o espírito. Ao animal, o homem. Somos ou não somos cristãos?! Não suspeitam.
Como aquele, quantos tenho eu encontrado no meu peregrinar! De uma vez era um trabalhador, pai de nove filhos. Conversámos. Daí a nada começa a ferida a sangrar.
- Meu padre, nunca senti na vida a alegria destes rapazes. Não tive pai!
Tantos anos e a ferida ainda a botar sangue: «Não tive pai!»
Não teve? Teve, sim senhor. Ele tem pai. Todos os Enjeitados têm pai. A geração espontânea é um erro da cienciazinha. Não digo tiveram. Digo têm. No Supremo Tribunal das derradeiras contas, tudo aparece no presente!...
Porém, aonde eu sinto mais intimamente a ferida que jamais cicatriza, é nas cartas que recebo. São Enjeitados que as escrevem. Homens de bem, feitos e colocados na vida por si mesmos, abraçam de onde estão as Casas do Gaiato: «Eu cresci ao abandono; por isso mesmo, amo essa Obra». São pregadores do Evangelho. Pregam o quarto Mandamento. Amam. Dizem, em suas cartas, à sua maneira, que a Família é laço talhado no Céu. Tão bem feito que se alguém o pretende desfazer, sofre e causa dor.
Ele é verdade que há uma lei chamada de «investigação de paternidade» para casos destes. Há, sim senhor. Vem lá tudo a dizer como é; mas o que se não diz, são os trabalhos, as despesas, mais o tempo que leva a investigar. Isso é ponto da experiência. Eu já sei como é. Não se trata de um caso de investigação, sim, mas coisa semelhante.
Era de uma vez uma mulher que eu afiancei por cinco contos de réis. Não foi tanto por amor dela como pelos filhos que teriam de estar com ela na prisão. Eram pequeninos. Entreguei o dinheiro. Deram-me o recibo e acabou. Cuidava eu que este «dê cá» seria igual ao «tome lá», a seu tempo. Mas não. Primeiramente um requerimento em papelzinho selado.
- Termos...?
- Aquele senhor sabe.
Aquele senhor fez o requerimento e pediu X. Entregou-se o documento a outro senhor.
- Dê cá mais X.
- ?!
- São taxas!
Enquanto verifica os dizeres da petição, o senhor vai informando a gente: «Isto agora vai ò Porto a despacho».
Assim aconteceu. Chegou o despacho.
- Ora agora ponha aqui um selo de cinco escudos e inutilize e tome lá o resto.
Eis do como se passam as coisas nas malhas da justiça!
PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena,
1.ª ed., 1986, pgs 142-144.