DOUTRINA
Não choras de arrependimento?... És infeliz!
Tantas crianças que se finam dos maus tratos da rua e dos caminhos! São vítimas de fome lenta. Tantas que nos morrem dela! Não é da que cá passam; é da que trazem. Assim se foram alguns em Miranda do Corvo. Assim outros, em Paço de Sousa. O mal vem de longe. Vem do seio das mães!
- Que tem você, senhora Júlia?
- Não tenho nada.
- Vejo-a assim não sei como?!
- Em comendo alguma coisinha, fico bem!...
Ia ser mãe, dentro em pouco, a senhora Júlia. Como esta, quantas?! Vem de longe o mal. Vem do próprio ventre das mães. «Comendo, fico bem!...»
Presentemente, anda-se aqui na Aldeia a ver se apetrechamos o hospital das coisas necessárias ao bem da população. Já se pediram e pediram e pediram. Não temos esperanças nem luzes de onde elas venham. São objectos caros. Outros que têm pretendido ou pretendem fazer algo de sério a bem da saúde destes seres, topam necessariamente com as mesmas dificuldades. Não há o entusiasmo. Não há o conhecimento. Não há a aflição. Quem é que pensa? Quem é que suspeita da tragédia da criança das ruas?
Há dias, saía do Lar do Porto, manhãzinha, e dou de cara com um rapaz encostadinho à porta. Passou ali a noite. Vinha de longe.
- Que queres tu?
- Leve-me prà Tutoria!
Tão sozinho! Tão amargurado! Ele que pela idade, deveria ser a doçura, espalhando e recebendo doçura! As lágrimas eram em bica. «Não quero ir p'ra casa; leve-me prà Tutoria». Que vida! Que lares! Crianças a pagarem dívidas que não fizeram e nós não queremos pagar o que lhes devemos! Quem se importa a sério? Eles são tantos e andam tão sujos e comem tais coisas em tais lugares, que a gente parece ter acabado por se convencer que não sentem nem têm as nossas necessidades!
E se aparece alguém debaixo do sol que nos alumia, a fazer um hospital com desejos de o apetrechar, tem de cingir muito ao peito os pequeninos que ama e chorar a cegueira dos tempos. Mais nada.
Ora isto vem a propósito do hotelzinho p'ra cães, na capital do reino. Eu cá não sou contra os cães. Temos em casa o «Nero» e o «Marão» e o «Top». Não dou licença que ninguém seja mais amigo deles do que eu. Pena tenho de chegar sempre tarde quando lhes vou botar uma côdea; a malta já o tem feito! Sim. Não sou contra os cães. Não se me dava, até, ser inscrito como amigo da Sociedade Protectora dos Animais. Não é, pois, dos cães que falo. É dos homens.
É dos senhores mais das senhoras. P'ra tudo há comissões reguladoras, só pro luxo é que não! O amor é dado ao nosso semelhante. Semelhante pela alma espiritual. É precisamente nisso e por isso que todos somos semelhantes a Deus. «O Verbo de Deus fez-Se carne.» Aqui começa a cartilha do verdadeiro amor. Fez-Se o que não era, sem jamais deixar de ser O que é.
Depois de haveres lido estas regras, não choras de arrependimento? Não extremas, ainda, o amor aos homens da amizade pelos animais? Não? Não?... És infeliz!
PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, pg. 145-147