DOUTRINA
«Era tudo gente a suspirar!»
Estava p'ra ser na véspera de Santo António mas, por via do «Capas Negras», ficou para o dia seguinte, não tendo, contudo, perdido nada do brilho e do valor que os tripeiros lhe quiseram dar. A Festa esteve toda nisto mesmo. Uma casa cheia, a suspirar. O Porto a marcar presença. Esgotou-se a bilheteira! Fora eu artista, que havia de pintar aqui a mulher da parábola, inundada de alegria, a berrar da janela a notícia de haver achado a moeda d'oiro que perdera. Tinha dez em seu poder, mas não contavam tanto como aquela. A perdida é que era a moeda. Por ela daria a vida. Foi essa que ela topou. Alegrai-vos! A janela rasgada foi mirante. Ora eu gosto muito de ver os factos e dá-los a conhecer à luz do Evangelho. Não há sombras porque não há corpos. É tudo Luz.
É desta maneira que todos nós devemos ver e compreender a Festa do Coliseu. «Era tudo gente a suspirar!» — como aqui em casa me declarou um dos nossos. Moedas perdidas! Moedas d'oiro, oiro nosso, perdidas nas entulheiras e hoje recuperadas. Alegrai-vos!
Aquele suspiro das almas presentes, dizia isto mesmo. Sim; quisera ser pintor! Tantos artistas têm pisado o palco do Coliseu! Tantos! Tamanhos! Paga-se um ror de os ouvir.
Agradam. Impressionam, sim. Porém, naquela noite de Festa, aparece o «Bucha» a cantar «o tio Marcolino» e chora-se. O «General» toca castanhetas e chora-se. O pastor assobia — com faz aqui às ovelhas — e chora-se. O Ernesto apresenta os do campo. O Lúcio, os da erva. O «Chegadinho», os cozinheiros. O Norberto, os roupeiros. O «Xancaxé», os das casas. O António, os que já ganham. O Manuel, os das oficinas. O Teles, os do Lar do Porto. O «Lisboa», os da Casa do Gaiato de Miranda do Corvo. O Herlander, os do Lar de Coimbra — e o povo chora! Mal um pequenino entra no palco, antes mesmo que se oiça nada do que ele vai dizer, já as almas fervem só de o verem entrar! Porquê? Moedas perdidas! Moedas d'oiro. Oiro nosso.
Mais luminoso o caminho do regresso a casa para todos quantos ali estiveram! Da Régua e da Murtosa, havia gente! Fora da porta, havia camionetas dos arredores da cidade.
«Alegrai-vos que eu encontrei a moeda», diz a mulher da parábola. As parábolas do Mestre são balas de Vida. Escondem a Vida. A Vida!
Nós somos todos, por adopção, filhos de um Pai comum. Ainda mesmo que isto não fosse doutrina certa, tê-la-ia revelado a Festa daquela noite com «toda a gente a suspirar». Se filhos, herdeiros. Se herdeiros, irmãos.
Quiseram que eu fosse ò palco. Eu achava que não fazia ali falta nenhuma; estavam lá os da Festa. Mas o povo bradava e eu não tive outro remédio senão aparecer. É a minha cruz. A Cruz!
P. S. — Recebeu-se dos Restauradores este telegrama:
«Lisboa assistiu em espírito inédito espectáculo espera sua Casa».
O telegrama não é assinado por ninguém. Cuido ter sido algum lisboeta que já sabe da Casa do Gaiato de Lisboa e que o adjectivo sua está ali a fazer as vezes de ela, Lisboa. Será assim?
Pois eu digo que se Lisboa espera por mim, também eu espero por Lisboa…
PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, pg. 160-162