DOUTRINA

A verdadeira riqueza da Obra da Rua

De vez em quando temos por costume ir visitar a «Viúva da Nota da Quinzena» a quem entregamos um pequenino reforço. Uma vez que falamos dela, temos igualmente de lembrar aqueles Desconhecidos que no princípio se propuseram e hoje continuam com a sua quota mensal. O que faz a persistência e quão grande não é esta virtude! Todos os meses, e isto há muitos deles, aí vem a devoção de não sabemos quem, dizer que a vida vale a pena e é bela e é copiosa e começa verdadeiramente no Fim!

A pequenina casa aonde ela habita dista da nossa uns vinte quilómetros que o Morris cobre num instante. Duas pontes estão ao nosso serviço: Duarte Pacheco e Abragão. Quase sempre vamos por uma e vimos por outra; amo a diversidade. Como sempre, é uma hora em que ela não conta, daí que vemos as coisas tal qual. Estava ao lume a panela do caldo que sobrara do jantar e ia fazer a ceia. Tirei o testo. Peço uma colher. Mastigo. A viúva explica: «É um caldinho muito bom»; e com toda a simplicidade conta de uma doença que teve e vai buscar caixas e frascos de remédios: «Olhe eu nem acabei isto!» Tal como os ricos, também os pobres deixam em meio as receitas.

Voltemos ao caldinho, por ser remédio que todos nós compreendemos e de que muito gostamos. Estava ali a panela sobre as cinzas da lareira. Segundo ouvi, o caldo tinha levado um bocadinho de carne de adubar e azeite. A viúva explica aquele luxo: «É por causa da minha doença».

A seguir, quer que eu cheire. Eu já tinha provado, mas ela deseja que eu use outros sentidos: «Que cheire». Depois, indica outra preciosidade do caldo: arroz. A viúva também lhe tinha posto um nadinha de arroz.

Dali passamos ao sobrado. Chega da fonte uma sua filha trazendo na mão um cântaro de água. Debaixo da cama há uma rima de batatas, tiradas ontem da terra: «São da nossa horta». Enquanto falávamos, ela vai a uma caixa, abre o escaninho e tira maços de cartas. Vê-se nelas o timbre da Obra da Rua. Dentro de cada uma há uma folha de papel, do nosso papel, aonde o rapaz encarregado escreve e assina quando faz a remessa mensal. Eu vi. Eu li. Mais persistência. O rapaz não se descuida nem se enfada. Todas e cada uma das cartas começam assim: «Com os nossos cumprimentos». A viúva torna a meter na caixa aquele maço de cartas. Não se trata de papéis. Cada uma foi uma mensageira. Conservam o perfume daquela hora.

E tudo isto se faz com cinquenta escudos por mês. Tanta abundância! Tanta alegria! Tanta vida!

Temos outras viúvas que se remedeiam com a mesma sorte, algumas delas ocupantes do Património dos Pobres. Não sei de capital que mais renda. Aqui se aprende e observa o milagre da multiplicação. Por mais que isto confunda as leis da economia, a verdade é que estes pequeninos auxílios causam a suficiência de um lar — e são a verdadeira riqueza da Obra da Rua.

PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, 1.ª ed., 1986, pg 346-348