DOUTRINA
Com linhas da vida do Pobre também se borda a matiz
Chegava eu há dias do Porto, no rápido da noite. Fui o primeiro a sair as portas da estação, com pressa de chegar a Casa: «Onde estiver o teu coração, aí o teu tesouro». Duas mulheres seguem-me; e logo um homem e logo outro e mais um; e um mundo todo: carregadores, mirones, Pobres de pedir - gente de ninguém.
- Estamos à sua espera para pagar a passagem a este rapaz.
E todos à uma, contentes por eu chegar, contam de como haviam já mendigado algum dinheiro - «ora mostra, rapaz» - e de como ele não chegara para o custo do bilhete.
Tratava-se de um moço de ao pé de Braga, ceguinho, que viera pedir luz à ciência de Coimbra e foi-se embora às escuras; mais sabe quem pediu e quem deu para ele. Eu gosto tanto de dar aos cegos porque me não podem ver!
Não é a primeira vez que «aquela pobre gente», como tu dizes, espera que eu chegue de fora ou vai ao meu encontro, piedosamente, implorar a passagem de Pobres errantes, nomeadamente os saídos dos hospitais com destino às suas terras; não é.
Gente da vida airada, amigos da taberna, povoadores das cadeias, rentes nos lupanares, não sei que me dá no peito ao ouvir-lhes a voz sincera e embargada: «Ajude-nos, Padre, que é para este desgraçado».
Ai dos Pobres, se não fossem os Pobres!
- Vossemecê vem sem nada?
- Venho sim senhor. Às vezes mandam-me alguma coisinha à porta, mas hoje não. E são meus cunhados!
Trata-se duma família de Coimbra miseravelmente rica, proprietária de muitos prédios, em muitas ruas, a quem decerto pagas renda; e não tem nada que dar à sua própria família!
Os avarentos, quando ricos, são perigosos à sociedade e, como tais, deveriam estar sujeitos à tutela de alguém! Por algo os amaldiçoa o Evangelho.
Eu entrei na cadeia da Comarca onde me demorei três dias a pregar aos Reclusos. O carcereiro fechava-me às nove e abria-me às seis da tarde, ou às dezoito se gostas mais.
- Ora ainda bem que está connosco: o rancho vai ser melhorado por você estar.
Por este regozijo humano entrava eu em plena conquista de todos e de cada um daqueles homens, ainda dos mais criminosos - primum vivere.
Sentia que todos eram meus.
Um dia chegou o rancho às grades; era o último dos meus trabalhos. Fomos todos comer. Dirigi-me a uma bacia que estava ao fundo da sala, lavar as mãos. Volto-me para limpar e dou de cara com dezoito Reclusos que tantos eram os ocupantes da cadeia, cada um com sua toalha nos braços e estes estendidos para mim: «Limpe-se aqui!»
Eu limpei as minhas mãos pecadoras dezoito vezes, a dezoito toalhas. «Ande, Padre, que a toalha é minha».
Não era da prisão; viera de casa, lavada pela mãe ou pela mulher, direitinha do bragal. Era o melhor que cada um me podia dar naquela maré. O que não teriam eles dado se tivessem quê- «a tal pobre gente» de quem tu foges e falas!
Senhor Jesus, eu não troco por nada deste mundo a suprema ventura de curar com panos de linho os Membros doentes do Vosso Corpo, considerados sem cura!
Do livro Pão dos Pobres, 3.° vol., pp 207-209.
Pai Américo