ERA O ANO I, N.º 7
O rapaz abandonado, o filho das ruas, adora o clima em que vive, onde acha infinitas doçuras. Nem sempre o que chega às nossas casas, conquista. A adaptação, em regra, é lenta e muito dolorosa. Nada no mundo que sobrepuge a caça ao tostão, a ponta do cigarro, o grupinho, a noitada. (...)
Um caso: O Luiz é vedeta, de Bêco. Um dia apareceu de saco na mão, para ficar. Tem uns olhos de azeviche. É meigo e inteligente. Cansou-se num instante do bem que procurava. Não se adapta. Geme:
— Deixe-me ir embora, pelas alminhas do purgatório!
Tinha a rua atravessada no coração; queria respirar!
Resolveu-se mandá-lo aviar um recado à cidade justamente para onde ele queria ir e ficar. Ele conhece todas as lojas, de namorar o que está lá dentro... para os mais! Deu-se-lhe um porta-moedas recheado. À noite regressa com compras e contas, importante. Mediu responsabilidades. Sentiu-se homem. Esqueceu mágoas. Jogou-se uma cartada e ganhou-se a partida. Hoje é o nosso procurador!
Mas este Luiz é um mundo. Ele tem pais e a Obra da Rua é para os sem família. Batem-nos à porta todos os dias os pedidos, os feirantes, os pedintes, os aleijados, — a legião da mocidade portuguesa!
— Olha Luiz, tens de ir para casa, porque tens família.
Olhou com duas lágrimas roliças e não disse nada, nem nós dissemos mais. Tempos andados, de novo chamámos o pequenino, e muito encostadinho ao peito, meigamente, que ele também o é, pedimos que nos dissesse o que havíamos de fazer à multidão crescente de desamparados.
— Traga-os para a nossa casa.
— Não vês que nos falta espaço?
— Arranje casas para nós, mas não me mande embora, pelas alminhas do purgatório!
As lágrimas caem sempre de muito alto e batem muito fundo!
São violentas. Ninguém resiste. Aquele para nós, em vez de para mim, como fez, foi ordem de comando.
O Luiz venceu. Forças vivas da nação. Ricos e pobres. Seitas e credos. Imprensa Opinião. Tudo e todos abrem caminho, à passagem do recoveiro que leva o recado do feliz gaiato: - arranje casa para nós!
Talhado para grandes coisas, ele levanta o brado de misericórdia e pede ao mundo que seja clemente, dando aos seus irmãozitos da rua, todo o bem que ora desfruta. Nunca se viu tamanha generosidade em tão pequenino coração; ele anda a mudar os dentes!
Pai Américo