O MEU TESTAMENTO
Os Padres da Rua, nome comum dos que servem a Obra, são sacerdotes seculares, que por sua livre vontade e licença superior, queiram vir e dar-se totalmente à Obra.
A sua regra é o Evangelho, meditado e praticado na vida interior e também na de relação com o seu semelhante, mormente com o Rapaz da Rua.
Não usam hábito. Não fazem votos. Não têm residência. Nem família, nem amigos, nem campos, nem interesses, nem nada. São pobres; pobres por devoção. Devem ser firmes e resistir com toda a confiança à tentação do Pecúlio, quer ela venha de dentro, quer de fora. Não se pode mentir ao Espírito Santo, como outrora fizeram alguns aos pés dos Apóstolos, e pereceram! Pobreza heróica e dolorosa, amada por amor da pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo, de cuja fidelidade depende a suficiência perene das coisas necessárias à vida, quer na doença, quer na velhice. Duvidar é recuar.
Os Padres da Rua, ao serviço da Obra, podem, naturalmente, pedir ao Superior e retirar dos dinheiros correntes o necessário para as suas legítimas necessidades; o Padre vive do altar. Mas não podem, em consciência, ter a sua bolsa. Não podem de maneira nenhuma fazer seu qualquer emolumento que porventura lhe seja pessoalmente atribuído. Não devem ser solícitos. Eles dão tudo à Obra e recebem tudo da Obra.
Os Padres da Rua são, dentro da Obra, o toque espiritual das almas que lhes estão confiadas. Eles são por natureza o pai de famílias; o homem aflito, queimado interiormente e constantemente pelas necessárias vicissitudes da Obra, até ao desgaste final — a morte. Não se molestem e sofram com paciência até ao fim, a ingratidão dos a quem servem, se a houver. É o sal. É a recompensa divina; eles são servos de Deus. Por estas dores, chega-se mais depressa à contemplação do Homem das Dores, que levou a vida mortal a servir. Assim como Ele, também os Padres da Rua. Lembrem-se e compreendam que o objecto principal e total da Obra é o Rapaz, ao qual, de maneira nenhuma podem sobrepor questões de ordem secundária; eles são da Obra por amor do Rapaz. Em casos muito graves, e depois de consultar o Superior, pode dar-se uma transferência, mas nunca a expulsão; os pais de família não mandam embora os seus filhos. De resto, a experiência ensina que o Rapaz da rua se elimina por si mesmo, quando lhe falta a capacidade moral de suportar o clima da Obra.
A Obra da Rua é o amparo da criança abandonada. Ela prefere os mais repelentes. Os mais difíceis. Os mais viciosos. A Obra nasceu com este espírito e assim tem de continuar, para ser através dos tempos uma palavra nova. Que ninguém jamais deturpe. No dia em que, por desgraça, se viesse a receber a criança com dote por uma que o não tem; se viesse a tomar a criança bem comportada por uma que o não é, nesse dia entrava a maldição de Deus no seio da Obra. Era a sua decadência.
O padrão da Obra é a família; vida familiar. Eis a escola natural da sólida formação do homem. Tudo quanto seja regresso a Nazaré, é progresso social cristão. Não há sistemas. Não há regras. Não há estatutos. Há a intuição. O uso de castigos corporais, aonde não possa ser totalmente banido, seja escrupulosamente aplicado; vale mais a palavra amiga, conveniente e oportuna.
A Justiça é a primeira arma de combate aos vícios, às quedas e más inclinações do Rapaz. Ela persuade, encoraja, dá brio; é irmã gémea do Decálogo. Por isso, o que preside tem de se munir desta arma para todos os casos, ainda os mais insignificantes, sabendo que, quanto mais tenra for a idade, mais vivo é na criança o sentimento da Justiça.
A vida religiosa nas nossas comunidades, seja o centro. As grandes aflições dos Padres da Rua tenham aqui a sua origem: vale mais a alma do que o corpo.
Por ela, pela alma dos Rapazes, sangrem os Padres até ao fim. A nossa Capela. A Missa dominical. O ensino da doutrina cristã. A prática das orações quotidianas. Os sacramentos: pôr-lhes a mesa, chamá-los ao banquete e chorar se eles não quiserem vir. Chorar os nossos pecados.
Cuide-se de fomentar na alma do Rapaz o amor aos pobres, como complemento necessário da sua educação religiosa; para tal, sejam distribuídas, por mão deles, parte das esmolas que os fiéis nos dão. Como já acontece nas Casas existentes, noutras que, porventura, se venham a erguer, dê-se ao Rapaz a iniciativa total desta santa e doce tarefa, por amor de Deus; estão aqui os alicerces seguros de uma Obra cristã.
A vida de trabalho deve seguir a par. Um dia de trabalho corresponde a uma noite tranquila e sã. Cada Rapaz tenha a sua obrigação e seja chamado a contas por ela. Que nunca se ocupe o estranho em trabalhos que possam ser feitos por eles. O brio, a iniciativa, a personalidade — tudo procede daquela fórmula. É a nossa divisa: Obra de Rapazes, para Rapazes, pelos Rapazes. O trabalho deles, por mão deles, querido por eles, é, ainda, a extinção lenta e sadia dos defeitos morais que os afligem.
A tendência da Obra é que sejam Rapazes os seus próprios continuadores. Por isso mesmo escolha-se entre eles o mais avisado e dê-se-lhe preparação. Os Padres da Rua não devem ter funções administrativas. É melhor que os trabalhos agrícolas, as indústrias e mais actividades, sejam dirigidas e exploradas por Rapazes idóneos, segundo a escolha do Superior, a quem devem prestar contas e dar todos os esclarecimentos.
Dê-se ao Rapaz o sabor de comer o pão, em nossas Casas, com o suor do seu rosto. Chame-se cada um a esta responsabilidade e não se lhe falte com o salário justo.
O fundamento da Obra da Rua é a sua pobreza. Os Padres da Rua são mendicantes: Padres pobres ao serviço de uma Obra pobre. Sempre que for necessário saiam a mendigar e recebam por amor de Deus, tanto o sim como o não. Também, com licença dos Bispos, vão pelas Igrejas e apresentem-se ousadamente como padres sem oiro nem prata; sabendo que a eficácia da palavra que faz estremecer as almas provém, não deles, mas sim da total concordância entre o que dizem e o que realmente são.
É proibido aceitar heranças por testamento. Não se deixem levar pelo falso raciocínio de que, tendo mais, podem fazer melhor, no caso de uma herança. Não é verdade. É a carne a falar. Rejeite-se aquele pensamento por um acto de fé na vida e nas promessas de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Sabemos que, pelas riquezas, viria, naturalmente, a cobiça; e por esta a intromissão. Acabariam na Obra os Pelicanos e entrariam os administradores dos bens, em detrimento do bem do Rapaz. É a traça.
As Casas fundadas ao tempo deste meu testamento e outras que porventura se venham a formar, devem gozar de uma racional independência e, quanto possível, bastarem-se. Porém, jamais a multiplicação venha nunca a prejudicar a sua Unidade.
O Gaiato, Ano V, N.° 127, 8-1-1949, p 1.