PATRIMÓNIO DOS POBRES
A visita dos pobres a esta Casa é considerada uma bênção de Deus. É Ele que nos bate à porta!...
As senhoras organizaram a distribuição de bens — roupas, calçado e alimentos -, das quartas às sextas, por serem dias de maior disponibilidade na cozinha e na dispensa. Neste período, os grupos variam entre as trinta e as quarentas famílias diárias, mas nos outros dias, é raro não haver gente a pedir.
Nós não estamos inscritos no Banco Alimentar. Vamos lá quando nos chamam por terem produtos em fins do prazo ou em situação de se estragarem brevemente. Mais nada. O que damos às pessoas carentes, são dons que aqui chegam por Amor de Deus.
O milagre da multiplicação dos pães, repete-se aos nossos olhos diariamente. Há mais de 60 anos que tenho a graça de ser dele testemunha!
As pessoas que nos aparecem vêm carregadas dos sofrimentos mais variados e, algumas, no limite da miséria.
A última sexta-feira amanheceu com intensa humidade e uma chuva miudinha ensopava a roupa de quem se expunha.
Apareceu-nos um grupo deles que dou à estampa, com crianças raquíticas recamadas de sujidade e fedorentas. As mães, duas mulheres ainda novas, deixaram o grupo e saíram ao meu encontro. Não sabem falar, muito menos ler ou escrever, apresentando um primitivismo chocante. Entendi que precisavam de dinheiro para comprar remédio pela exibição de um frasco pequeno.
As senhoras atenderam-nas, enchendo-lhes as sacas de diversos alimentos.
Quando o grupo se retirou, vou dar com as duas senhoras, de porta aberta, na casa-de-banho a lavarem as mãos e desinfectarem-se com álcool. Surpreendido, perguntei-lhes o porquê de tanto cuidado. A resposta foi instantânea: —Se visse as sacas onde a gente pôs o pão!... Nem imagina!... Aquilo era uma imundície!...
Como é que aquelas mulheres e, com certeza os seus homens, nestas idades, não sabem ler?... Como?... Como foi possível que ninguém os obrigasse a ir à Escola? Com menos de trinta anos, uma ignorância terrível! E agora quem põe fim a esta situação?
Não falo só deste grupo, mas de muitos parecidos que demandam a nossa Casa acampados ao frio e à chuva, vidas sem-rei-nem-roque. Uma vergonha para um País civilizado e para toda a humanidade evoluída!...
Os filhos vão no mesmo caminho dos pais: desprezados, sujos, repelentemente ignorantes, famintos, caídos na desgraça!
Estes marginais só encontrariam dignidade se lhes fosse facilitada uma habitação fixa, sujeitos a uma vigilância e um acompanhamento constante e duradouro.
Não sendo assim, a miséria gere a miséria, aumentando a ruína humana, a qual passa de pais para filhos!...
O Estado faz alguma coisa pela minoria cigana fixa, obrigando à escolaridade os filhos, sob pena lhes cortarem o subsídio de rendimento mínimo se não cumprirem esta imposição. Muitos adultos não têm hábito de trabalho e, se não sabem ler, também o mesmo Estado os obriga a frequentar cursos e adquirir alguma cultura. Muitos passam o tempo à procura de dinheiro pelo tentador tráfico de droga e a miséria vai-se alastrando!...
Acho graça àquilo que não tem graça nenhuma. Entra um pequeno para a Casa do Gaiato e a Segurança Social, a Comissão de Protecção de Menores bem como o Tribunal têm de saber e de deliberar se o menor fica seguro ou não! E... a estas pobres desgraçadas crianças, marginalizam-nas desta forma! Não se atrevem a resolver de vez, e de forma humana, tanta desgraça que se repete.
Eu sei que eles se escondem da GNR e de outras forças policiais! Mas? Meu Deus! Não será mesmo possível pôr um ponto final, de forma humana, nesta degradação?...
De vez em quando sou intimado a prestar declarações às três instâncias sobre os Gaiatos que esta Casa acolhe com um carinho e nível familiar únicos! Vou uma vez e muitas vezes.
Esta gente é paga para fazer relatórios e cumprir leis a que somos obrigados, sem qualquer utilidade visível! Estas crianças, a que me refiro, ficam assim entregues a pais incapazes e miseráveis, procriando o peso da miséria, para eles e para a comunidade futura!...
Padre Acílio