PÃO DE VIDA
O Porto é o Porto!
Ai Porto, Porto, quão tarde te conheci!
Padre Américo
Parece-nos que o conhecido dito supra se reveste de alguma retórica, mas verdadeira, embora naqueles anos de Recoveiro dos pobres, em Coimbra, tenha lutado muito por dar de comer aos famintos e consolar os tristes, o que narrou no Correio de Coimbra com beleza e esperança, mesmo em lágrimas. Américo de Aguiar, impelido pela Graça e depois de uma rica experiência franciscana, foi bem acolhido e viveu na Diocese de Coimbra de 1925 a 1943, num tempo de séria preparação para o presbiterado, discernimento da sua vocação e de evangelização, em especial o serviço aos pobres (a sua inclinação). Depois, o Espírito acabou por soprar também para as origens, que afinal eram suas desde tamanhinho e como adolescente, na capital do Norte.
Na verdade, próximo da Sé Catedral portucalense e do Seminário Episcopal de Nossa Senhora da Conceição, ao tempo do santo Bispo D. António Barroso (que o crismou), o rapazito foi-se fazendo um verdadeiro homem cristão. Contudo, as circunstâncias não eram favoráveis, pois tinha-se agravado a questão religiosa depois do caso Calmon (em 17 de Fevereiro de 1901), com motins anti-eclesiais no Porto, que se estenderam pelo País. Em breve relance do seu itinerário, acontece que Américo Monteiro de Aguiar (AMA) tinha deixado o Colégio vicentino de Santa Quitéria, em Felgueiras, considerando a decisão paterna de enveredar pelo comércio e não entrar no Seminário, conforme era seu desejo e manifestado à mãe Teresa. Deste modo, acabou por se orientar com 15 anos para o velho burgo portuense, nos princípios do século XX (1902), onde se empregou numa loja de ferragens, na rua Mouzinho da Silveira. Verificou-se que continuava amigo dos pobres, cuja devoção lhe vinha desde pequenino em Galegos, conforme revelou em missiva para Manuel Cunha, a seguir ao Natal de 1942, de Coimbra: no tempo em que eu fui Marçano no Porto (1903/1905) pedia de moto-próprio e entregava às Irmãzinhas, no Mercado do Anjo. Elas vinham ali todas as semanas, com um carreto. Na cidade invicta, nas imediações do Seminário da Sé, em cuja igreja de S. Lourenço era assíduo, acabou por conhecer o Cónego Manuel Luís Coelho da Silva, que depois, como Bispo de Coimbra, o recebeu no Seminário de Coimbra (1925) e o ordenou de Presbítero (1929). Com 68 anos, sucedeu-se o encontro final com Jesus, o Bom Pastor, também na cidade do Porto, no Hospital de Santo António, onde foi para o céu em dia da Senhora do Carmo; e o seu funeral jamais será esquecido por uma multidão que o testemunhou, do qual se fez eco largamente toda a imprensa da época, como preito de saudade, veneração e gratidão.
A cidade do Porto, para quem tem alma e coração tripeiros, é uma nação, até porque daqui houve nome Portugal! Entre tantas figuras de proa e uma multidão anónima, na história (escrita) do Porto tem sido negligenciado Pai Américo por quem não o conhece, nomeadamente na sua acção eclesial relevante na defesa e promoção dos pobres, que deixou marcas indeléveis na memória de muita gente, bem impressa nas páginas d'O Gaiato e em palavras emotivas no Coliseu do Porto. No seu belo livro O Barredo, chamou a esse sítio Lugar de mártires, de heróis e de santos. A sua estátua, na praça da República, tem sempre flores frescas!
A modos que este intróito serve de pretexto para contextualizar, radicar e fazer memória das Bodas de Diamante da Casa do Gaiato das Ruas do Porto, em Paço de Sousa, que se comemoram no dia 20 de Abril deste ano da graça. Os seus primórdios mais chegados podem encontrar-se numa missiva de António Russel de Sousa, da Litografia Nacional, no Porto, de 10 de Novembro de 1942, enviada para o Padre Américo, na Rua da Trindade (n.18), em Coimbra, outrora o Lar do Ex-Pupilo dos Reformatórios, e que diz assim: uma organização oficial de que faço parte necessita para cumprir a sua missão do auxílio de V. Ex.ª. Ficar-lhe-ia muito grato se tivesse a amabilidade de informar-me se tenciona vir brevemente a esta cidade ou onde mais facilmente poderíamos trocar impressões a respeito. Entretanto, o Padre Américo não tardou a tomar o rápido para o Porto, por esse assunto - Casa do Gaiato do Porto, de forma que escreveu ao mesmo amigo assim, em 25 de Fevereiro de 1943: espero tomar posse dentro em breves dias. Esse grande entusiasmo pela Obra que já não é minha, por ser do Porto, procede da grandeza da miséria infantil e da bondade dos vossos corações: nada mais.
Nesse tempo de confrontação bélica, em 6 de Abril de 1943, o francês Antoine de Saint-Exupéry publicava o célebre conto infantil O Principezinho. O mundo estava a sofrer os efeitos da terrível II Guerra Mundial, depois do discurso em 18 de Fevereiro sobre a guerra total do ministro de Propaganda nazi, Joseph Goebbels, como a duríssima repressão das SS alemãs no gueto de Varsóvia, em 19 de Abril de 1943. E em Portugal também se sentia muito a extrema pobreza, com as precárias condições de vida de grande parte da população, em especial pelo racionamento dos géneros alimentícios.
De notar que, num artigo publicado em 20 de Abril de 1943, no semanário A Ordem, Pinheiro Torres escreveu assim: Quem conhece o Porto vê como é não só necessário mas urgente que, em Paço de Sousa, os gaiatos, que na rua vadiam tenham o seu lar, onde reinarão a ordem, a disciplina voluntariosamente consentida, o amor ao trabalho, a fraternidade cristã. [...] O problema dos menores em abandono, em miséria, em perigo moral é dos mais angustiosos aspectos do problema social.
Entretanto, o Padre Américo ia gradualmente conhecendo os mais pobres, nas ilhas e nos bairros degradados do Porto, conforme testemunhou: A cidade do Porto fornecia campo extenso de observação, sempre que por lá passava. Logo à saída da estação de S. Bento dava de cara com a chusma de maltrapilhos, os cônsules da minha gente que, não sei porque bula ou sinal, dirigiam-se a mim, confiados, a relatar as suas necessidade mais instantes — a grande, a única daquele momento: comer! [...] Daí a nada eu era conhecido da tropa e venerado. Já não é na estação [de S. Bento]; é mais além, em sítio ermo, que o pequenino se aproxima e conta a sua tragédia. Sei aonde e como vive. "Eu fico nas retretes, senhor abade". Sei da família. Sei dos costumes. É tal o desejo que eles experimentam de que alguém no mundo ouça a sua história, que as iscas e as tascas não têm lugar na conversa. É preciso lembrar-lhes: - Queres comer? Estava indicado um local nos arredores do Porto para lançar os fundamentos de uma réplica à Casa do Gaiato de Coimbra. O Porto, dizia comigo mesmo, há-de compreender. Há-de auxiliar. Há-de responder. Não podia ser dentro dos muros da cidade. Fora. Longe.
Assim, foi constatando as misérias sociais in loco, sonhou, pensou criar e emergiu outra Casa, como família para rapazes abandonados e sem família, como tinha fundado em 7 de Janeiro de 1940, em Miranda do Corvo, na Diocese de Coimbra. Por isso, com as necessidades prementes a gritarem, alguns desafios amigos e um sonho grande de ajudar a infância e a adolescência desvalidas, a exemplo de S. João Bosco, levaram-no a expandir a Obra da Rua para a Diocese do Porto, da qual era originário, concretizando a segunda Casa do Gaiato, em Paço de Sousa, no edifício e na quinta do antigo mosteiro beneditino, conforme em 1943 deixou escrito: Apareceu-nos a antiga cerca dos monges beneditinos de Paço de Sousa, a uns 30 quilómetros da cidade do Porto. Não a procurei. Estava ela de quedo à minha espera.
Entretanto, sobre a incursão acima, com a sua pena de artista da palavra, Padre Américo foi descrevendo mais pormenores importantes e com os quais se tece esta história que seguimos. Eis: Se eu fosse a contar a minha vida desde o princípio, faria um livro de memórias de que muito havias de gostar; mas não. Antes quero revelar as coisas mais recentes e calar as distantes.
Trazia eu o pensamento ocupado com o convento de Arouca, com mira a fundar ali a Aldeia dos Rapazes, quando adreguei de passar por Paço de Sousa, onde existe um convento beneditino consumido há três anos [em 21 de Outubro de 1940] pelas chamas de um incêndio.
— Fique por aqui, Padre — disse-me alguém.
Entrei dentro das ruínas. Vi a arte, a piedade e a fé dos monges, nas sólidas construções daquele tempo, sob o signo sagrado do ora et labora. Passeei a cerca, subi à mata, olhei em redor. Soube da posição jurídica da fábrica monástica. Pedi papel e tinta; escrevi para Lisboa.
A resposta veio num rufo: — Sim senhor.
Tomei posse a 20 de Abril [de 1943]. No dia imediato, em um altar da igreja românica de Paço de Sousa, sozinho, lançava a primeira pedra. Jesus Cristo é a forma viva e a pedra angular das Obras de Caridade.
Agora, impõe-se mesmo fazer uma pausa quinzenal, mas na mira de entretecermos mais alguns fios históricos na linha desta epígrafe: De como nasceu a Casa do Gaiato do Porto.
Ao nos encontrarmos nesta velha cidade granítica três décadas depois desse acontecimento decisivo, no fim do antigo regime e em Verão quente, também de turbulência liceal, e ainda nos finais do milénio, no coração da Igreja portucalense, veio-nos à mente, em sequência, o Ameriquinho do Bairro — Américo Monteiro de Aguiar que aí trabalhou e depois quis aportar tarde (?), com 37 anos, à procura do ideal do Mestre... Actualmente, o Porto tem sido invadido por muitos turistas, mas há misérias que não foram debeladas. Quem vive no Porto ou aí chegou, alguma vez, tem desta antiga cidade a sua visão e paixão, inesquecível se lá nasceu, sofreu ou venceu, pois o Porto é o Porto!
Padre Manuel Mendes