PÃO DE VIDA

Recordando o Papa Paulo VI e Óscar Romero

Ao longo da História, com luzes e sombras, alegrias e esperanças, nascida do Pentecostes, a Igreja tem procurado ser a assembleia do Senhor, na qual Deus está vivo! Os cristãos são chamados a pôr em prática o que celebram na Eucaristia: a viver em comunhão, a estabelecer a justiça e a ver Cristo nos pobres. Ninguém pode estar em silêncio e desinteressado diante das escandalosas situações de miséria e pobreza no mundo. O Deus de Jesus Cristo é o Deus libertador do sofrimento - da enfermidade, do pecado e da morte.

Entre muitas figuras eclesiais do nosso tempo, que deram a sua vida pela Igreja e pelo seu povo (tantos rostos e nomes, muitos deles esquecidos...), no dia 14 de Outubro, Domingo, foram destacados dois grandes exemplos de santidade, que sonharam configurar a Igreja segundo o Evangelho. Hoje, justamente, o Papa Francisco canonizou o Papa Paulo VI
[26-IX-1897, 6-VIII-1978], cujo lema era In nomine Domine [Em nome do Senhor], levando a bom termo o II Concílio do Vaticano, e o Arcebispo Óscar Romero [15-VIII-1917, 24-III-1980], marcado pela opção preferencial pelos pobres (até ao martírio). Paulo VI e Romero foram grandes pastores de um século de mártires, que se inseriram num percurso importante de reforma da Igreja a caminho do cerne da identidade cristã, do qual indicamos de forma muito breve alguns protagonistas e momentos marcantes desde o século XIX.

A acção social da Igreja - a Caridade e a Justiça - está inscrita no código genético da vida dos cristãos desde as origens do Cristianismo e sintetizou-se nas obras de misericórdia. Foi-se diversificando, em função das necessidades humanas e estruturas das sociedades, e manifestou-se em muitos carismas e figuras de relevo.

O Padre Américo, grande amigo de Deus e dos pobres, resumiu bem o testemunho vivo e permanente da acção eclesial: A caridade nasceu na Igreja há vinte séculos e nunca saiu de ao pé da mãe. O bem-aventurado Frederico Ozanam, fundador das Conferências de S. Vicente de Paulo, aos 23 anos [16-XI-1836], escreveu com coração de samaritano: Só vemos a Deus com os olhos da fé, e a nossa fé é tão débil! Mas os pobres, vemo-los com os olhos da carne [...], podemos pôr o dedo e a mão nas suas chagas, e as marcas da coroa de espinhos vêem-se nas suas frontes. Os Pobres são para nós a imagem sagrada do Deus que não vemos. Desde a Encíclica Rerum novarum, sobre a condição dos operários [15-V-1891], do Papa Leão XIII, até aos nossos dias, foi sendo elaborado um corpo de princípios, designado por Doutrina social da Igreja.

O II Concílio do Vaticano constitui o acontecimento mais importante da Igreja Católica, no século XX, pela sua aproximação à cultura moderna e à situação social. Em 11 de Setembro de 1962, um mês antes do seu início, o Papa João XXIII pronunciou um discurso, difundido pela Rádio Vaticano, no qual disse lucidamente: Em face dos países pobres, a Igreja apresenta-se como é e quer ser: a Igreja de todos, mas especialmente dos pobres. Foi o Cardeal Lercaro, Arcebispo de Bolonha, que retomou a palavra de João XXIII, com uma intervenção memorável sobre a pobreza e o serviço sacerdotal, pedindo aos Padres conciliares: o tema central deste Concílio é a Igreja precisamente tal qual é a Igreja dos pobres. O dominicano Yves Congar, O. P., também foi uma importante voz profética: É uma Igreja em diálogo que será também uma Igreja pobre e serva, uma Igreja que tem uma palavra evangélica para todos os homens: menos do mundo e mais do mundo.

Neste sentido, o II Concílio do Vaticano, na Constituição Dogmática Lumen Gentium [21-XI-1964], proclamou: Tal como Cristo consumou a redenção na pobreza e na perseguição, também a Igreja, para poder comunicar aos homens os frutos da salvação, é chamada a percorrer o mesmo caminho [n.8]; e consignou com muita clareza: a Igreja ama a todos os angustiados pelo sofrimento humano, reconhece mesmo a imagem do Seu Fundador, pobre e sofredor, nos pobres e nos que sofrem, esforça-se por lhe aliviar a indigência e neles deseja servir a Cristo [LG 8]. Em 16 de Novembro de 1965, cerca de 40 Bispos celebraram nas catacumbas de Domitila e assinaram o chamado Pacto das Catacumbas - por uma Igreja serva e pobre: Renunciamos para sempre à aparência e à realidade da riqueza [...]. Em 7 de Dezembro de 1965, na Basílica de S. Pedro, na sessão pública de clausura do II Concílio do Vaticano, o Papa Paulo VI, no seu magnífico discurso, salientou: Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. Com efeito, um imenso amor para com os homens penetrou totalmente o Concílio. Na véspera, numa alocução, na linha de S. Bernardo, rejeitando a imitação dos sinais cristãos aos da nobreza, opôs-se aos distintivos anacrónicos [constantinianos] da dignidade episcopal: hoje não deve ser assim...

Sendo o primeiro pontífice a visitar Portugal, o Papa Paulo VI veio a Fátima em 13 de Maio de 1967 e afirmou convictamente: Homens, sede homens. Gerado no ventre do II Concílio do Vaticano, instituiu o Sínodo dos Bispos, que reuniu em 29 de Setembro de 1967. A 7 de Dezembro de 1967, em simultâneo com o Patriarca Atenágoras, de Constantinopla, levantaram a excomunhão mútua. Entre outros documentos, referimos, v.g.: a Encíclica Populorum Progressio [26-III-1967], com a afirmação emblemática - O desenvolvimento é o novo nome da paz; e a Encíclica Humanae Vitae [25-VI-1968], sobre a doutrina moral da Igreja.

O modelo de uma Igreja pobre para os pobres repercutiu-se nos anos que se seguiram ao Concílio, como na América Latina, em Medellin [1968], em que a Igreja assumiu uma aproximação à situação social, com a sua opção preferencial pelos pobres e a denúncia das estruturas injustas de pecado e opressoras do povo. Entre muitos cristãos empenhados e perseguidos, um dos grandes expoentes foi o brasileiro Bispo D. Hélder Câmara, que queria ajudar a levar a Igreja aos caminhos perdidos da pobreza.

Na América Latina, a vida do Arcebispo de São Salvador, D. Óscar [Arnulfo] Romero [Galdámez], é um exemplo contemporâneo e forte de martírio eclesial, experimentado como pastor e profeta, que verteu sangue, antevendo oferecer a sua vida pelo rebanho: Creio que qualquer trabalho pastoral verdadeiramente comprometido com os pobres será sempre perseguido e, talvez, isto seja um sinal que nos manifesta a fidelidade da missão profética da Igreja ao Senhor, no meio do seu povo. O Arcebispo mártir de S. Salvador chegou a afirmar: se me matam, ressuscitarei no povo salvadorenho. Foi o que veio a acontecer, ao ser assassinado na manhã de 24 de Março de 1980, no altar, quando celebrava a Eucaristia. Na véspera, disse: Em nome de Deus e desse povo sofredor, cujos lamentos sobem ao céu todos os dias, peço-lhes, suplico-lhes, ordeno-lhes: cessem a repressão. Dos seus preciosos Escritos inéditos (1977-1980), sob o título A Igreja não pode calar-se, com pensamentos e conselhos, esta dica: Força, rapazes! Os grandes ideais não se conquistam sem esforço e sem trabalho [2-X-1979].

Ainda do ministério petrino, em 2005, na Encíclica Deus caritas est [n. 28], o Papa Bento XVI afirmou: O amor - caritas - será sempre necessário, mesmo numa sociedade mais justa. No dia 16 de Março de 2013, o argentino Cardeal Jorge Bergloglio foi escolhido como seu sucessor; e o brasileiro Cardeal Cláudio Hummes disse ao Papa Francisco: Não te esqueças dos pobres. Em relação aos pobres, veio-lhe ao coração o nome de S. Francisco de Assis e afirmou: Ah! Como gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres. Em Novembro de 2017, pela primeira vez, foi celebrado o Dia Mundial dos Pobres, que instituiu e em cuja mensagem sublinhou: Os pobres não são um problema: São um recurso de que lançar mão para acolher e viver a essência do Evangelho.

Procurando assim um precioso tesouro espiritual, neste veio abundante encontra-se um rico filão sobre a Igreja pobre para os pobres, vivida por cristãos comprometidos - samaritanos - e sensíveis ao clamor dos pobres. Ficaram alinhavados apenas pequeninos fios, num percurso histórico eclesial que importa muito considerar, olhando a realidade do mundo com os olhos de Deus. É uma memória eclesial muito grata, a propósito da significativa canonização do Papa Paulo VI e do Arcebispo D. Óscar Romero, recordados pela sua fidelidade ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo e amor à Santa Igreja Católica.

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Excursus - Deus é amor - verdade eterna! A propósito do assunto supra, sendo Deus também humor, seja-nos permitido dizer o seguinte: parece-nos que a Causa de Beatificação do Servo de Deus Padre Américo, a seguir o seu curso na Congregação para as Causas dos Santos, também teria ficado bem na Congregação para as Causas dos Pobres (que ainda não foi criada, no Vaticano...).

Errata - No artigo Ainda da oração em Fátima, neste jornal, de 29 de Setembro, faltam três palavras: «[...] três simples crianças, [as duas primeiras] canonizadas a 13 de Maio de 2017: Francisco, Jacinta e Lúcia.» Da infelicidade da composição, erro da escritura, desmancho dos números e outras imperfeições da estampa não há que dizer-vos: Vós os vedes, vós os castigais [...] - D. Francisco Manuel de Melo [1608 - 1666].

Padre Manuel Mendes