PÃO DE VIDA
A Casa de Repouso do Gaiato Pobre
Em Julho de 2021, fez 82 anos que Padre Américo - depois de vários serviços aos pobres por mandato do seu Bispo D. Manuel, como a Sopa dos Pobres [1932], e uma década após a sua ordenação presbiteral, em Coimbra - tratou por quarenta mil escudos uma casa de campo em Miranda do Corvo para os garotos das ruas, conforme escreveu: A compra da casa que havia de ser do Gaiato, foi feita sem dinheiro. [...] Isto foi no mês de Julho, de trinta e nove. Por aquele tempo, tinha eu em Vila Nova do Ceira os garotos das colónias, a quatro alqueires de boroa nas vinte e quatro horas, fora o mais que eles consumiam. Tinha a costumada visita semanal às famílias pobres de Coimbra, que eram minhas, muito antes da revolução do garoto, e nunca, por causa dela, deixaram de o ser. Tinha despesas, encargos, compromissos e muita esperança no dia de manhã [Obra da Rua, 1942, p. 44-45]. No início do ano seguinte, chuvoso e frio, em tempo de Natal, os primeiros filhos tiveram assim abrigo seguro - conforto, pão e carinho. Esta pequenina família cristã, entretanto, foi crescendo, como anotou: Principiámos com três deles, em Janeiro de 1940, e no fim daquele ano estávamos na casa das dezenas. Já não é considerado doentinho o catraio que chega; é antes um doente da alma, que se cura com trabalho e pão [O Gaiato, n. 1, 5 Mar. 1944, p. 3].
Desde os seus primeiros passos, a vida em abundância da Obra da Rua foi sendo narrada por Pai Américo e pelos seus cronistas, em belíssimas páginas. Sobre esta obra eclesial de serviço aos pobres mais novos, para além das perspectivas do seu fundador e dos seus filhos acolhidos, também interessam outras aproximações ao seu modus vivendi. É o caso de um simples Relatório com o título supra manuscrito, da autoria de J. Machado de Araújo, seguido de quatro páginas de texto dactilografadas. Foi encontrado nos papéis desta Casa e desconhecemos o seu propósito. No final, são indicados o local e a data da sua redacção: Coimbra, 30 de Janeiro de 1947. Para que fique devidamente arquivado e conhecido, transcrevemos o seu conteúdo, com ligeiras correcções. Eis:
Obra da Rua
Foi com a fundação das Colónias de Campo do Garoto da Baixa, em S. Pedro de Alva [no concelho de Penacova], em Maio de 1935, [e em 1937 na freguesia de Vila Nova do Ceira], que nasceu a ideia de criar a Casa de Repouso do Gaiato Pobre.
A oportunidade de compra da Quinta de S. Braz, em Julho de 1939, permitiu a criação da nova modalidade da Obra da rua.
A Casa do Gaiato, modalidade assistencial inteiramente nova entre nós, pode considerar-se revolucionária nos processos educativos: «Os usos e costumes da Casa, [que também é uma escola], são ensinados aos que chegam, pelos que estão» [Obra da Rua, Coimbra, 1942, p. 51].
Os dirigentes, além das suas funções de poderes moderadores, cuidam que nada falte dentro daquele pequeno mundo.
Tudo está ordenado segundo uma hierarquia social e de trabalho estabelecida pelos próprios rapazes e que a ela se subordinam voluntariamente.
O sistema hierárquico estabelecido depende em cada ano dos escolhidos por eleição da comunidade no primeiro mês do ano. Esta orgânica interna parece dar os melhores resultados em atingir os objectivos a que a Obra da Rua deitou ombros:
Valorizar a personalidade dos rapazes, inspirar-lhes confiança em si próprios, evitar-lhes os Reformatórios e a Cadeia, fazendo destes rapazes homens válidos, é o objectivo da modalidade da Casa do Gaiato.
Nem todos que a ela se acolhem beneficiam, e então alguns, raros, abandonam livremente o seu lar adoptivo. Porém, há os que voltam e são recebidos como o filho pródigo.
Para os que não tenha sido possível educar na Casa, criou a Obra da Rua o Lar do Ex-Pupilo dos Reformatórios em 1941, com sede em Coimbra. A páginas 58 do «Folheto» que acompanha este Relatório vêm formuladas as bases da sua organização interna [vd. livro Obra da Rua, 1942, p. 59-78].
Quanto à maneira como decorrem os trabalhos da Casa do Gaiato, uma vez constituída a hierarquia, todos têm as suas obrigações a cumprir. É-lhes distribuída a tarefa segundo as suas aptidões, nos serviços rurais e domésticos. Somente as lavagens da roupa e os serviços rurais incompatíveis com as suas forças são feitos por elementos estranhos ao quadro da comunidade.
Desde o milho farinado no moinho ao pão que comem, à cozinha, à mesa, aos cuidados a ter com as limpezas, à protecção devida aos mais pequeninos, etc., a tudo eles provêm e deles depende.
A disciplina imposta pelos eleitos à comunidade é aceite sem grandes atritos, que não sejam os motivados pela adaptação aos trabalhos que lhes são destinados.
Padre Manuel Mendes