PÃO DE VIDA
A Casa de Repouso do Gaiato Pobre
Continuamos a seguir um Relatório inédito sobre a Casa de Repouso do Gaiato Pobre, em Miranda do Corvo, do início de 1947, numa perspectiva de quem a conheceu in loco e relatou o que viu, de novo. Antes, é de reflectir sobre uma afirmação forte de Pai Américo sobre os seus preferidos - os pobres de Jesus, quando procurava levantar uma Obra nova e surgiam tantas dificuldades. Diz assim: «Em nome de Deus quero solenemente declarar hoje, aos amigos da Obra, que ela foi criada e lançada para amparar dignamente o Filho da Família Pobre. E que, se eu não puder vencer o costume, a opinião e a caridade do mundo, os três inimigos das Obras de Deus, fecho a porta, entrego a chave, dou as boas noites e vou-me embora» [Casa de Repouso do Gaiato Pobre, Coimbra, 1942, p. 23].
É de considerar que Pai Américo tinha rumado para Paço de Sousa em 1943 e a denominação da Casa foi sendo alterada, como sublinhou: «[...] Trocou-se por trabalho o nome de repouso e ficou sendo única e simplesmente a Casa do Gaiato. Nova era. Vida plena. Saúde e alegria. Os velhos processos continuam em outras obras de assistência. Por amor do rapaz eu sofro. Desejaria libertá-los. Dizer a cada um quem ele é, quanto vale e o que pode. Sim; desejaria. Mas é impossível. Contra decretos não posso nada; e eles contam-se por milhares.» [A Porta Aberta, Paço de Sousa, 1952, p. 6].
Então, registam-se mais notas do dito Relatório - sobre a pedagogia, a finalidade e a continuidade da Obra. Eis: «[...] As refeições são tomadas em comum com os dirigentes. Ao findar do dia de trabalho, após a última refeição, fazem o relatório verbal dos serviços. Feita pelos dirigentes a revisão geral e crítica dos acontecimentos do dia, são transmitidas aos superiores hierárquicos eleitos as ordens dos serviços para o dia seguinte. Recolhem às suas camaratas, após as orações da noite e depois de terem ouvido palavras de incitamento ao cumprimento dos deveres para consigo próprio e para com os seus camaradas. Rapazes há que trabalham fora de casa e, para esses, vão também conselhos especiais de harmonia com os trabalhos e as entidades que os ocupam.
Ali não se cuida só do pão do corpo, também lhes merecem cuidados a instrução. A escola, instalada precariamente, funciona em regime de três turnos de harmonia com a divisão dos serviços rurais e domésticos.
Uma pergunta surge a todo aquele que penetra os umbrais da Casa do Gaiato:
Terá esta modalidade as mesmas possibilidades após a falta do seu grande animador?
Toda a obra, para quem a vive e sente, nem por momentos se permite duvidar do seu êxito. Se falha, é a incompreensão de muitos e a indiferença de mais ainda que ao pretório levaram a sua condenação. Está-se em presença duma história maravilhosa vivida e contada pelos pequenos 'rapazes da rua'.
A certeza de si próprios e da sua utilidade, para quem corria o risco duma vida vegetativa e escrava dos vícios, é motivo de incitamento para os seus realizadores. Só uma força geradora de almas eleitas pode lançar-se a uma Obra capaz de perdurar.
A Casa do Gaiato de Miranda do Corvo é uma prova de que a Obra viverá dentro da mesma orgânica quando um dia vier a faltar o Homem que lhe deu os fundamentos, porque o seu espírito fica integrado já nas bases desta Obra.
No Verão, quando funcionam as Colónias de Campo, a 4 quilómetros da Casa do Gaiato [junto à Capela da Senhora da Piedade, em Miranda do Corvo], é o pequeno da 'Casa' que preenche todos os serviços das respectivas Colónias.
A seguinte divisa em verso dá-nos conta das bênçãos da Casa a todos aqueles que se aproximam:
Se és amigo, entra amigo.
O pão que temos aqui,
Neste pequeno abrigo,
Também chega para ti.
E a quem experimenta aceitar o convite, terá lugar à mesa, uma cama para dormir e a surpresa dum laboratório lapidando brilhantes em bruto.
Esta Obra é o exemplo vivo da faculdade criadora, da Fé que move montanhas.
Diz-nos o próprio Apóstolo da Obra da Rua: 'O garoto das ruas é um camaleão. Em casa, desobedece; a pedir, é choramingas; com os outros, é refilão; nas ruas, é malcriado; às perguntas, é mentiroso. Muda de cor e de estilo, conforme os lugares e as circunstâncias.
Porém, se ele percebe e sente que alguém no mundo o ama, quer amar também, e é fiel.' [Obra da Rua, Coimbra, 1942, p. 23].
Fica assim resumido em poucas linhas as razões morais da Obra, da sua finalidade e da garantia de continuidade futuras.»
A parte final - Instalação - fica para a próxima. É um esboço de retrato dos espaços da primeira Casa do Gaiato, da Obra da Rua.
Padre Manuel Mendes