PÃO DE VIDA

Da sopa dos Pobres

Na sequência de um enquadramento histórico ligeiro da Sopa dos Pobres [1932], de Coimbra, continuamos a elencar iniciativas beneméritas anteriores e desse tempo, congéneres, em face das carências e do racionamento alimentar em Portugal. Assim, do século XVIII ao século XIX, verificou-se «no exercício da assistência coimbrã um esforço notório de protecção aos seus, às famílias decaídas, aos pobres envergonhados e aos meritórios em geral.» [Maria Antónia Lopes - Pobreza, Assistência e Controlo Social em Coimbra (1750-1850), vol. II, Viseu, 2000]. Em meados de oitocentos, em Coimbra, surgiram as sopas económicas - dos pobres, que eram gratuitas, de acordo com o escrivão Diogo Pereira Forjaz Pimentel [1817-1885]: «aplicando-se para a sopa económica os sobejos da cozinha, que é costume distribuir-se diariamente à portaria do Colégio» [Arquivo da Misericórdia de Coimbra - Actas das sessões [1847-1858], fls. 36-37]. Em 4 de Julho de 1933, por iniciativa do Bispo de Coimbra, D. Manuel Luís Coelho da Silva, a Condessa do Ameal, D. Maria Amélia Ayres de Campos [elogiada por Padre Américo - Pão dos Pobres, I, 1941, p. [253], 267-268], com um grupo de Senhoras, fundou a Cozinha Económica da Rainha Santa Isabel, na baixa de Coimbra, depois entregue às Criaditas dos Pobres [Manuel de Almeida Trindade - Maria Carolina Sousa Gomes e as Criaditas dos Pobres. Coimbra, 1987, p.124].

De notar que, em época de grandes dificuldades socio-económicas, surgiu a prática do Pão dos Pobres ou Pão de Santo António, em 1895, na igreja da Ordem Terceira, em Braga, por iniciativa dos franciscanos do Convento de Montariol, nomeadamente Fr. João da Santíssima Trindade. A Voz de S. António - órgão da Pia União [Porto, 1.º anno, Abril 1895, p.76], na Chronica do Pão dos Pobres, informou: «Já se estabeleceu o Pão dos pobres em Braga e em Rio de Moinhos (Penafiel). Foi uma festa muito bonita a que se fez em Braga na egreja dos Terceiros, dia 25 de Março [...]». A propósito, Américo de Aguiar tinha 7 anos e aquela freguesia penafidelense é próxima da sua terra - Galegos.

As cozinhas económicas de Lisboa, nos finais do século XIX, implicavam um pagamento módico. A 16 de Maio de 1917, foi inaugurada a Sopa para os Pobres, em Lisboa, por iniciativa do jornal O Século [Ilustração Portuguesa, Lx.ª, II série, N.º 588, 28.5.1917, p.426]. Devido à falta de víveres e ao aumento do custo de vida, durante a I Guerra Mundial, entre 19 e 21 de Maio de 1917, houve movimentos de protesto social - a revolta da batata - em Lisboa, no Porto e noutros locais. Por Decreto de Sidónio Pais [n.º 4031, de 30.3.1918 - Diário do Governo, n.º 67, I série, 3.4.1918] foi criada uma Comissão Central para o «estabelecimento e administração das sopas económicas dentro da cidade de Lisboa». Ao longo do século XX, entre as Guerras e depois, noutras localidades portuguesas, também foram surgindo mais cozinhas económicas e sopas dos pobres [v.g., em Matosinhos, pelo Padre Manuel Francisco Grilo (1888-1968)].

Sendo a caridade a virtude do amor às criaturas humanas por amor a Deus e a misericórdia a compaixão da pessoa humana pelos seus semelhantes que sofrem, ambos os sentimentos do coração humano revelam-se por obras que implicam o socorro de quem precisa. As obras de misericórdia são a concretização da compaixão humana e da vontade humana de ajudar o próximo. Na Doutrina Cristã, foram elencadas em catorze as obras de misericórdia: sete de índole corporal e sete de natureza espiritual. As obras corporais, do ensinamento de Jesus, encontram-se prescritas no Evangelho [Mt 25, 34-36].

Assim, continuando a seguir de forma breve o percurso inicial da Sopa dos Pobres, de Coimbra, na linha da tradição caritativa e misericordiosa eclesial, o Padre Américo vai direitinho ao cumprimento das obras de misericórdia diante de situações gritantes de fome e injustiça, suas conhecidas, conforme a acção relatada nas crónicas semanais do Correio de Coimbra. O dinamismo da primeira obra de misericórdia - dar de comer a quem tem fome - é programático nos seus passos de Recoveiro dos pobres, de acordo com o primeiro texto [não assinado, mas certamente da sua autoria] que foi recolhido [e retocado] no seu livro Pão dos Pobres [I [volume], Coimbra, 1941, p.[5]-6], que transcrevemos na íntegra da sua fonte. Eis:

«Sopa dos Pobres no Patronato

Esta, que não tem nada que ver com o Patronato mas que funciona ali, é apetitosa, forte, muito rica e cosinhada por mãos amigas dos pobrezinhos e é servida à uma hora da tarde.

Tem sido distribuída desde Janeiro numa medida de 25 rações diárias, graças ao subsídio mensal do nosso Prelado de 350 escudos, mais os seguintes donativos registados no mez findo:

Dr. Abílio Dias Andrade 100$00

Dr. Freitas Costa 50$00

Prof. Maria Máxima Boléo 15$00

D. Victoria Salema 20$00

Anónima 10$00

Mas é necessário ir mais longe. A miséria é muita e, como o tempo e as marés, não espera por ninguém. Há que subir o numero das rações. Das famílias actualmente socorridas conhecemos algumas de oito, seis e cinco membros, que levavam respectivamente três, dois e um litros de sopa. Era muito pouco. Alem disso havia alguns muito necessitados à espera de vez. Com o mez de Março as coisas modificaram-se. O subsídio do Sr. Bispo subiu. Temos já alguns subscritores certos e promessas seguras de mais. Houve uma dadiva generosa de 200 escudos com esperanças de continuar. Em resposta à nossa local da semana passada, alguém responde com um alqueire de feijão branco e carne de porco. Bem haja. Presentes desta natureza fazem-nos muito geito. Quem mais responde com legumes secos e verdes, carne, azeite? De tudo necessitamos. Também precisamos duma panela de trinta litros. Quem no-la oferece? A superiora do Patronato ou o Padre Américo do Seminário recebem ofertas.

E assim é que desde o princípio do mez corrente já as famílias numerosas levam sopa suficiente para uma refeição familiar e alguns dos mais necessitados que esperavam vez, tem sido inscritos. A selecção é tanto quanto possível rigorosa e a miséria verdadeira, em muitos casos conhecida e apalpada por nós, nas próprias habitações. Acudam pois ao nosso apelo. Não é favor nenhum dar de comer a quem tem fome; é um dever de consciência... cristã.» [Correio de Coimbra, N.º 508, 5 Março 1932, p. 4].

Na mira de contextualizar e fazer um bocadinho de história da Sopa dos Pobres, de Coimbra, rebuscando nos arquivos e com a benevolência dos leitores, ainda daremos mais notícias sobre as suas origens, que conduziram à Obra da Rua.

Padre Manuel Mendes