PÃO DE VIDA

Da Sopa dos Pobres

Como é sobejamente conhecido e se vem comprovando, o apostolado social do Padre Américo em Coimbra, nos primeiros anos do seu ministério presbiteral, ficou marcado pela Sopa dos Pobres, entre outras missões de Recoveiro dos Pobres. As suas belas e concretas notas semanais no Correio de Coimbra iamcongregando ajudas tão necessárias para os Pobres de quem era próximo e amigo, como testemunha fiel da Igreja.

O sábio Professor José Maria da Cruz Pontes [1925, Póvoa do Varzim - 2019, Coimbra], num breve estudo pioneiro, escreveu assim: «Na verdade, o Padre Américo começou a publicar no Correio de Coimbra crónicas semanais, como que relatórios, apresentando ao público o destino de tudo o que lhe mandavam para os pobres, as criancinhas dos bairros da cidade.

As suas palavras apareciam no jornal, ainda ensanguentadas, gritando muita dor escondida e muitas agonias ocultas. Por isso tocavam fundo no coração dos leitores e o Padre Américo lançava-se num apostolado intenso e apaixonado.» [Cruz Pontes - Pequeno Ensaio sobre a Casa do Gaiato. Braga: Liv. Cruz, 1950, p. 20].

Na procura de fontes e informações americanas [do Padre Américo], a que nos devotamos, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, há vários anos, descobrimos - entre a correspondência de Padre Américo com António de Oliveira Salazar, então Presidente do Conselho de Ministros - três cartas interessantes. Na primeira delas, dactilografada, que publicámos em primeira mão [O Gaiato, n.º 1956, 2 Março 2019, p. 4], encontra-se uma referência bem explícita aos primórdios desta acção caritativa, que convém rememorar aqui. Esta missiva foi escrita no Seminário de Coimbra, com data de Junho de 1933 e vem assinada à mão: Padre Américo de Aguiar! Então, sobre a Sopa dos Pobres, deu notícias das aflições dos pobres, assim: «[...] Por esta mala respondo ao Ex.mo Sr. Luiz Machado Pinto, enviando os esclarecimentos que posso dar da Sopa dos Pobres, mas receio nada poder conseguir, porquanto não tenho Estatutos nem escrituração. Distribuo na medida que recebo, pelas portas dos novos pobres, famílias de muita fome com vergonha de pedir; e para os necessitados que facilmente pedem, as Religiosas Hospitaleiras, na rua da Matemática, distribuem diariamente setenta tigelas de sopa com um pedaço de pão quatro vezes por semana, porque não tenho meios para fornecer todos os dias. Eis tudo. O "Correio de Coimbra" dá o movimento semanal d'esta Sopa dos Pobres. [...]» [TT/AOS/CP - 009, cx. 866].

No Anuário Católico de Portugal 1932 [p.203], esta informação de ajuda alimentar é corroborada, conforme se verifica pelo seguinte parágrafo: «Patronato das Meninas - na Rua da Matemática, n.º 49, dirigido por Franciscanas. Superiora, D. Maria de Jesus Pereira. Dá instrução e uma sopa a 70 crianças.»

O próprio Padre Américo, no seu livro Pão dos Pobres [I, Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1941, p. [1]-2], em «À laia de prefácio», explicou em duas penadas os motivos desta publicação, resumindo assim: «Venho hoje a este mirante fazer um bocadinho de história, dar uma novidade e pedir uma opinião. Conto para tanto com a piedosa benevolência do público e desde já entro na matéria.

A Sopa dos Pobres, criação do Senhor D. Manuel Luiz Coelho da Silva, foi por ele inaugurada em o dia 19 de Março de 1932. Nessa data andava eu enfermo e, como não pudesse trabalhar, roguei ao então meu prelado que me deixasse ao menos visitar pobres e cuidar da sopa deles, serviço este compatível com as minhas dores de cabeça de então.

Dentro em breve tempo e em virtude dos apelos aqui feitos, começa a ser espantosa a lista semanal das ofertas, vindas de todo o mundo e publicadas no Correio de Coimbra: - da Europa, da África, da América, de todas as províncias do País. Por avião, por vapor, por comboio, por camionete, de automóvel, em carro de bois, em mão própria. Nas ruas, nas estradas, nos eléctricos, nas igrejas, nos comboios, nos hospitais, nas casas. Roupas, calçado, livros, selos. Patos, perús, cabritos, galinhas. Azeite, batatas, feijão, doces, farinha, mel, mercearias. E dinheiro; muito dinheiro, muitíssimo dinheiro. O meu prelado chama-me a contas e pregunta-me por elas; eu digo-lhe que as não tenho nem as faço. Resposta pronta e textual: a sua vida é um mistifório; e nunca mais me interrogou. Eis o bocadinho de história. [...]».

Em divergência temporal com as notícias precedentes, que recolhemos, publicadas no semanário diocesano, verifica-se que Padre Américo marcou a inauguração da Sopa dos Pobres, de Coimbra, em 19 de Março de 1932, Solenidade de S. José, de quem o seu Bispo D. Manuel era tão devotíssimo. Teria sido nesse dia que o seu Prelado confirmou este serviço in loco, na Rua da Matemática, em Coimbra, e o encarregou ipso facto dessa missão? Como frequentemente acontece, a inauguração foi posterior ao início de actividade. Não encontrámos registo escrito desta nomeação, que afinal foi determinante no seu itinerário biográfico.

Nas páginas conclusivas do primeiro volume desse belíssimo livro - em que foram recolhidas notas da campanha de 1932 a 1939 - resume o miolo desta missão, numa época de carências fortes, centrado na primeira das obras de misericórdia temporais, deste modo: «Se primeiro não se dá de comer a quem tem fome, não acreditam nas nossas palavras, e até deturpam as nossas intenções. O Evangelho entra pelo estômago.

A ordem das obras de misericórdia começa pelo dar de comer a quem tem fome; e quando, na hora derradeira, o Justo Juiz vier em glória e em majestade, dar a cada um aquilo que lhe pertence, nessa hora, digo, o castigo ou a recompensa, há-de girar à volta do dar de comer.» [Pão dos Pobres, I, 1941, p. 279].

No caminho traçado por Deus, nos Seus desígnios, sobre essa causa próxima do envio parao serviço dos Pobres, pelo seu Bispo de Coimbra, D. Manuel, Padre Américo reafirmou: «Doente como então era, o meu Prelado havia-me dispensado de todas as obrigações, tendo eu tomado esta de visitar Pobres, por não servir para mais nada.» [O Ovo de Colombo. Paço de Sousa: Tip. Casa do Gaiato, 1954, p. 8]. Pelos vistos, ao longo da sua vida cheia de entrega ao próximo, por amor a Deus, continuou sempre com dores de cabeça; porém, nunca se curou duma doença extremamente benéfica que o fez um Padre feliz para os outros, na promoção da dignidade humana: a Caridade! E que caminha a par com a Justiça, pela qual sempre pugnou para os últimos e os que sofrem.

Padre Manuel Mendes