PÃO DE VIDA
Da trasladação de Pai Américo
Considerando que foram horas muito significativas para a Igreja Católica em Portugal, especialmente a Obra da Rua e os seus muitos amigos, no sentido de rememorarmos este acontecimento marcante e visando dar algumas achegas sobre a trasladação dos restos mortais de Pai Américo para a Capela da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, conforme a sua vontade expressa, cinco anos depois da sua morte, em 17 de Julho de 1961, há certamente mais informações a desvendar e que podem ajudar na configuração da verdade histórica dos momentos principais desse dia doloroso, testemunhado por uma multidão de pessoas. Assim sendo, vamos dar a conhecer uma carta ministerial [inédita], que foi possível encontrar no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa [TT/AOS/CP - 054, cx. 911], e constitui uma novidade com certo interesse biográfico. A matéria em questão há-de ser compreendida nos seus contextos eclesial, social e político da época.
Então, para memória futura, segue-se a transcrição na íntegra de uma carta [dactilografada] de Henrique Martins de Carvalho para António de Oliveira Salazar. A missiva tem no canto superior direito: os números 252 e 253 [a lápis, nas páginas 1 e 2], a nota Visto [a lápis azul] e o carimbo Biblioteca Nacional - Arquivo Salazar - Lisboa. Notam-se imprecisões geográficas. Eis:
«MINISTÉRIO DA SAÚDE E ASSISTÊNCIA
GABINETE DO MINISTRO
Lisboa, 19 de Julho de 1961
[ms.] Senhor Presidente
Na passada 2.ª feira fui assistir à trasladação do corpo do Padre Américo do cemitério junto ao mosteiro de Cete para a Casa do Gaiato.
2. Em todo o norte do país e especialmente no Porto, o Padre Américo é uma grande figura que, cinco anos depois da sua morte e em dia normal de trabalho, levou a Cete umas 5.000 pessoas. Cerca de três mil assistiram à missa campal celebrada na Casa do Gaiato, em frente à capela onde ficou sepultado.
Esteve para haver dificuldades, uma vez que, não obstante o Ministério da Saúde ter dado desde início o seu acordo à trasladação (e parece que esse devia ser o ponto fundamental do problema), o processo relativo a ela atrazou-se nos Ministérios do Interior e da Justiça, e tive que recomendar directamente o assunto pois vi o risco de, na segunda feira, chegarem a Cete milhares de pessoas e a trasladação não poder ter lugar. Mas tudo se corrigiu a tempo e nada houve a este aspecto que merecesse relevo particular.
3. Todavia, deve notar-se que o Senhor Vigário Apostólico da Diocese não foi convidado pelos "padre da rua" [sic] para assistir à cerimónia.
Porém, o Senhor D. Florentino compareceu a ela, salientando que o fazia "sem convite", e foi-lhe imediatamente atribuído o primeiro lugar. Mas não deixa de ser significativa a atitude tomada... Na homilia - a missa foi rezada pelo Padre Engenheiro Carlos Galamba (sucessor do Padre Américo) - usou da palavra o D. Abade de Singeverga, que para tanto havia sido convidado.
4. Pessoalmente, fui alvo de deferências muito amáveis. E os "Padres da Rua", de vários dos quais sou amigo, salientaram o prazer de ver ali "quem acompanhou o Pai Américo desde antes da fundação da primeira Casa do Gaiato". - Tenho a impressão que foi útil alguém do Governo ter estado presente na cerimónia.
[ms.] Disponha sempre V. Excelência do criado m.to dedicado e grato
Henrique Martins de Carvalho».
Depois da leitura atenta desta carta ministerial, é obrigatório esclarecer logo que os restos mortais de Pai Américo estiveram (de 1956 a 1961) no cemitério paroquial de Paço de Sousa, junto à igreja do antigo mosteiro de Paço de Sousa. É evidente que não se trata da vizinha freguesia de Cete; mas, o erro repetiu-se.
É notado pelo Ministro da Saúde e Assistência que o processo de trasladação se atrasou nos Ministérios do Interior e da Justiça. Nessa época, do II Governo do Estado Novo, tinham as pastas desses Ministérios, respectivamente: Alfredo dos Santos Júnior [1908†1990] e João Antunes Varela [1919†2005].
Conforme já referimos, no tempo do exílio de D. António, o Prelado presente na trasladação foi D. Florentino, Administrador Apostólico da Diocese do Porto [vd. António Teixeira Fernandes - Dom Florentino de Andrade e Silva: Contemplação, pensamento e acção. Com fotobiografia. [s. l.]: Contraponto, 2005.].
Na celebração Eucarística, participou sua Paternidade o Abade do Mosteiro de S. Bento de Singeverga, D. Gabriel de Sousa [1912†1997], figura eclesial muito estimada na Obra da Rua, pela sua afinidade e proximidade, sendo primo de Padre Américo, pela Casa de Vales de Cadeade, em Paço de Sousa.
A comunhão eclesial da Obra da Rua com o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, nomeadamente em momentos muito difíceis como a morte de Pai Américo e no seu exílio forçado, pode ser comprovada[v.g., artigos de Padre Carlos: «Presença da Igreja», in O Gaiato, N.º 324, 28 Julho 1956, p.1, 2, 4; «Sentir com a Igreja», in O Gaiato, N.º 402, 8 Agosto 1959, p. 1; «In Memoriam do Senhor D. António Ferreira Gomes», in O Gaiato, N.º 1178, 6 Maio 1989, p. 1]. É de notar que o jornal O GAIATO era uma voz incómoda para o regime político desse tempo e era Visado pela Comissão de Censura. Por testemunhos pessoais, tivemos conhecimento do encontro de Padre Carlos e Padre Baptista com D. António Ferreira Gomes, no seu exílio em Espanha. Depois de regressar do exílio civil (desde 24 de Julho de 1959), em 16 de Julho de 1969, o Bispo do Porto visitou a Casa do Gaiato de Paço de Sousa e o Calvário, em Beire [v.d., Júlio Mendes - «Maré alta - com a presença do nosso Bispo comemorámos o 13.º aniversário de Pai Américo no Céu», in O Gaiato, N.º 662, 26 Julho 1969, p. 21.
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Para contextualizarmos, ainda, o assunto supra, verificámos que, na caixa de correspondência consultada, do Arquivo Salazar, na Torre do Tombo, a seguir à missiva agora publicada, se encontra uma carta confidencial e pessoal com a mesma data [19-7-1961], do mesmo Henrique Carvalho para Salazar, sobre a situação política nacional, nomeadamente as seguintes questões: os monárquicos e as listas da União Nacional, para as eleições legislativas; os católicos progressistas; e os acontecimentos de Angola. De facto, em 15 de Março de 1961, houve uma onda de violência contra a presença portuguesa, cujos ataques teriam sido desencadeados pela UPA [União dos Povos de Angola] e em que foram mortos e mutilados centenas de colonos brancos e também mestiços e negros, nas fazendas do café, no norte de Angola - zonas do Dembos, Negage, Núcua e Nabuangongo. Os anos sessenta do século XX, também em Portugal, foram marcados por momentos muito difíceis e dolorosos, a nível político e social, nomeadamente com a Guerra Colonial.
Padre Manuel Mendes