PÃO DE VIDA
Pai Américo em férias
Na investigação devotada do percurso biográfico do Padre Américo, como as cerejas, encontram-se muitas facetas que podem contribuir para esboçar um retrato de corpo inteiro. O tema férias também tem o seu lugar no itinerário de vida neste mundo, exemplar, mas interrompido aos 68 anos. Está comprovado que Américo Monteiro de Aguiar foi um trabalhador empenhado e honrado no Porto e em Moçambique. Enquanto adolescente ia à Casa do Bairro (Galegos) e à Casa de Antelagar (Paço de Sousa). Como exemplo do seu descanso merecido, durante a sua actividade laboral na costa oriental de África, é muito conhecida a sua viagem para Portugal em gozo de férias, em 1912, tendo embarcado na Beira a 7 de Abril, via canal de Suez; e na qual o vapor da viagem apanhou um S.O.S., do paquete de luxo Titanic. Depois, como sacerdote, cansado de tantos trabalhos na ajuda e promoção dos pobres, quando era possível, parava alguns dias, nomeadamente em terras do Vale do Sousa, das suas raízes familiares, no Gerez e também aceitava ficar em casas de amigos. Na Casa do Gaiato de Paço de Sousa, as casas da mata e do bairro foram sítios de descanso. Enquanto seminarista de Coimbra, participou em Colónias de Férias (v.g., Buarcos, 1927). Foi pioneiro e responsável por Colónias de Férias de campo para Rapazes pobres (S. Pedro de Alva, Vila Nova do Ceira, Miranda do Corvo). E sonhou Lares de Férias para cada Casa da Obra da Rua.
Neste Verão extremamente seco e flagelado por incêndios pavorosos, como na Serra da Estrela, no encalço de páginas desconhecidas sobre esta perspectiva, entre outros, encontrámos um belo naco de prosa, sobre uma viagem à cidade invicta com companheiros de sacerdócio. A propósito, em Agosto, fizemos uma pequena paragem nos belos jardins do sítio do antigo Palácio de Cristal, no Porto. Foi a esse lugar que Padre Américo rumou, de comboio, partindo de Coimbra, no estio de 1934, para ver uma Exposição Colonial e certamente recordar os seus 16 anos africanos. Valeu bem a pena transcrever (respeitando a ortografia), do centenário jornal da Diocese de Coimbra, os parágrafos seguintes:
«Uma semana de férias sabe bem a toda a gente e a Sopa tomou-as, em reunião de curso, com início na estação velha em direcção ao norte, ver o esforço e o valor dos portugueses nas galerias do Palácio de Cristal.
O nosso curso é sòmente de sete, mas apareceram doze! A Sopa não tem fronteiras; todos cabem dentro dela. Veio o Raúl, veio o Manuel d'Anseriz, veio o Cruz Gomes, veio o das Alhadas, e o José Ventura. Isto é mestifório, não é reunião diz o Louro! Mas não falava do coração!
Tomou-se assento na carruagem. Na Pampilhosa entram os Padres da Gandra. As preguntas cruzam-se no ar, curiosas e desalinhadas, em algazarra de escola num feriado com que se não conta. O povo vai espantado com tanta irreverência! Os quilómetros vão caindo aos nossos pés em cearas loiras que passam, arrozais extensos, o Vouga plumbeo - Belesa!
Espinho, Granja, Aguda - praias de luxo, onde o Porto elegante digere os seus bens. A seguir, Devezas. Um grande ai de espanto, para os que nunca tinham visto o berço de Portugal.
A Pobreza gloriosa dos Padres do meu curso não lhes dá para viagens, a não ser a que fazem do presbitério para a sua igreja, e nisso vai todo o seu valor e toda a sua grandeza moral. Têm tudo, estes Pobrezinhos: pão, alegria, amor às almas e às suas obras, que são obras de Deus.
Os Padres ricos também se sentam na cadeira de Moisés e dizem... mas não fazem.
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Lembramos de novo aos nossos queridos leitores a pequenina órfã, de oito anos, que um operário da Baixa tem em casa por esmola, mas não tem pão que chegue para ela.
Um cantinho no vosso coração!» [«Sopa dos Pobres», in Correio de Coimbra, Ano XIII, N.º 637, 8 de Setembro de 1934, p.2].
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Depois destas linhas de viagem e que também servem de meditação, seguem-se breves notas acessórias. De notar que Padre Américo como sujeito pôs ênfase numa obra que
servia os Pobres, desde 1932 - a Sopa dos Pobres. A Baixa onde padecia a órfã refere-se à de Coimbra. O edifício do Palácio de Cristal foi concebido para a Exposição Internacional do Porto, sendo inaugurado em 1865 e existiu no antigo campo da Torre da Marca, em Massarelos - Porto; porém, foi destruído em 1951 para Pavilhão dos Desportos. A mostra visitada foi a Exposição Colonial Portuguesa, inaugurada em Junho de 1934. A Estação velha, inicialmente com o nome de Coimbra, foi inaugurada em 1864 e é a actual Estação de Coimbra-B. A Estação da Pampilhosa referida é na Pampilhosa do Botão, no concelho da Mealhada, sendo um centro ferroviário. O território da Gândara integra o concelho de Mira e franjas dos concelhos de Vagos, Cantanhede, Montemor-o-Velho e Figueira da Foz. A Estação das Devezas é a Estação Ferroviária de Gaia, inaugurada em 1863.
Sobre a Exposição Colonial Portuguesa, o então Cónego Manuel Trindade Salgueiro escreveu um artigo de fundo no semanário diocesano de Coimbra, de que recortamos o princípio: «A cidade invicta 'donde teve origem - como é fama - o nome eterno de Portugal', tem vivido horas de vida intensa, em virtude da primeira Exposição colonial portuguesa, realizada dentro dos seus muros. [...]» [Correio de Coimbra, Ano XIII, N.º 634, 18 de Agosto de 1934, p.1].
Neste âmbito, sobre o texto supra, é esclarecido o seguinte: o Raúl é Raúl Duarte Mira, do Luso; o Manuel d'Anseriz é Manuel Peixoto, de Anceriz (Arganil); o Cruz Gomes é António Antunes da Cruz Gomes, de Folques (Arganil); e o José Ventura é o José Monteiro Ventura, de Folques. Nas listas de muitos alunos dos Seminários de Coimbra, ainda não descortinámos: o das Alhadas (Figueira da Foz) e o Louro... Quanto aos colegas de curso [ou cursos] do Padre Américo, é matéria interessante para dar notícias, se Deus quiser.
Padre Manuel Mendes