PÃO DE VIDA

Do Holodomor

O Cristianismo, desde a sua raiz, pugna pelo respeito humano e por uma cultura de paz entre os povos, mesmo com as vicissitudes históricas. Jesus disse a Pedro: «Mete a tua espada na bainha» [Jo 18, 11]. No século XX, houve tragédias humanas enormíssimas, especialmente duas Guerras Mundiais e regimes totalitários com milhões de vítimas. De notar que, em Março de 1937, o Papa Pio XI condenou o nazismo [Encíclica Mit brenneder Sorge, 14-III] e o comunismo ateu [Encíclica Divinis Redemptoris, 19-III]. A História tem um vastíssimo panorama de luzes e sombras, não abarcável, verificando-se que a única coisa que não aprendemos são as lições da História [Hegel].

Seis meses depois da invasão militar em larga escala da Ucrânia pela Rússia, em 24 de Fevereiro de 2022, esta guerra cruel e trágica - com elevadas vítimas humanas, sofrimentos indizíveis e grandes destruições - também veio complicar imenso a produção e o escoamento dos cereais. Por isso, 90 anos depois, vem a propósito e terá justo cabimento fazer uma brevíssima memória histórica de um genocídio ucraniano, resgatando o chamado Holodomor, que paradoxalmente é uma desconhecida [ou escondida] tragédia alimentar humana ocorrida na Europa, nomeadamente entre 1932 e 1933. De referir também o Grande Terror [Grande Purga] estalinista, de 1936 a 1938; e a fome na China em 1958-1961. Este pequeno exercício de abordagem à Grande Fome da Ucrânia ajuda a compreender melhor o actual conflito no Leste europeu, com as suas graves consequências para a humanidade.

A Ucrânia é o segundo maior país europeu e considerado o celeiro da Europa. O acrónimo Holodomor [Oleksiy Musiyenko, 1988], em ucraniano, resulta da conjugação das palavras holod [fome] e moryty [matar através de privações], significando matar pela fome. A fome vermelha: a guerra de Estaline contra a Ucrânia [Anne Applebaum, 2019], em que terão morrido de 3,3 a 7,5 [estimativas] milhões de pessoas, dos quais a maioria foram crianças, foi o resultado de uma política bolchevista de despotismo ditatorial, com a colectivização da agricultura ucraniana, sendo lançada por Estaline [1878-1953] e em que foram espoliados e expulsos milhões de camponeses das suas terras.

Na obra Fome 1933: O Livro Memorial do Povo [Kyiv, 1991], foram recolhidos cerca de seis mil testemunhos sobre esta grande tragédia humana. Disse Maria Chtyfuruk: «Dez, quinze pessoas morriam todos os dias. Levavam-nos numa carroça e atiravam-nos para uma vala e, no dia seguinte, recomeçava-se. [...] O meu pai entregou ao kolkhoz os seus cavalos e a sua vaca. Depois, morreu de fome... Levaram tudo sem deixar nada em troca; deixaram as pessoas morrer de fome. Destruíram as casas. Deportaram as pessoas para o Grande Norte ou a Sibéria; elas nunca mais voltaram. Só Deus sabe o que lhes aconteceu».

Outro testemunho, de Lyuba Tchervatyuk: «Eu tinha o meu pai, a minha mãe e a minha avó. Ao fim de duas semanas estavam os três mortos. Fiquei sozinha em casa. Tinha 12 anos, que podia fazer? Não havia nada para comer em lado nenhum. Saía de casa de manhã e vagueava pelos pomares até ao cair da noite à procura de algo que pudesse mastigar, nem que fosse erva ou relva [...]. Depois, fiquei doente».

Vyacheslav Molotov [1890-1986], uma figura de proa do poder soviético, disse: «A questão é a seguinte: se temos pão, temos poder soviético. Se não temos pão, o poder soviético acabará por desaparecer. Actualmente, quem tem o pão? São os camponeses ucranianos reaccionários e os cossacos do Kuban. Não nos irão dar o pão de livre vontade. Terá de lhes ser retirado».

No Verão de 1932, houve uma enorme onda de protestos dos camponeses. Em Novembro de 1932, o Partido Comunista da Ucrânia impôs aos camponeses particulares e aos kolkhozes multas em géneros alimentícios, para punição do incumprimento ou sabotagem do plano de colecta. Entre o Outono de 1932 e o Verão de 1933, cerca de 3,5 a 5 milhões de ucranianos, na Ucrânia e no Kuban, sucumbiram aos efeitos da fome e de epidemias, como o tifo e a desinteria, sendo muito elevada a taxa de mortalidade infantil. As pessoas fugiam das áreas afectadas, mas entretanto foram isoladas: em Janeiro de 1933, a polícia política do regime soviético impediu a fuga de camponeses dos territórios da Ucrânia e do Kuban. De Março a Abril de 1933, quinze a vinte mil pessoas morreram por dia. Durante esta catástrofe alimentar, o Estado soviético continuou a exportar cereais e acumulou reservas estratégicas. Milhares de colonos oriundos de outras repúblicas da U.R.S.S. foram transferidos para territórios ucranianos, sendo que entre 1933 e 1934 cerca de vinte mil famílias russas e bielorussas foram para a Ucrânia.

A mortalidade incidiu principalmente na população rural, de origem ucraniana. Nas cidades, o cenário também era trágico. Por exemplo, em Kkarkiv [capital da Ucrânia até 1934], morreram mais de 120 000 pessoas num ano. De um relatório [de 31-5-1933] do cônsul italiano nessa cidade, Sergio Gradenigo: «Desde há uma semana, foi organizado um serviço para recolher crianças abandonadas. Com efeito, além dos camponeses que afluem à cidade porque não têm qualquer esperança de vida no campo, há as crianças que trazem para aqui e que são em seguida abandonadas pelos pais, os quais regressam à aldeia para lá morrerem, esperando que a cidade cuide da sua prole.[...] Os que ainda não estão inchados e apresentam uma possibilidade de sobrevivência são encaminhados para os abarracamentos de Holodnaia Gora, onde em alpendres, sobre palha, agoniza uma população de perto de 8.000 almas, composta essencialmente de crianças».

O adido militar polaco em Moscovo, no seu relatório de 1933, informou: «Em resultado da acção brutal das autoridades, houve uma grave fome que causou, como consequência lógica, um enorme despovoamento (cerca de 5 milhões de mortos). A acção do governo traduziu-se principalmente na mobilização compulsiva da população para as colheitas. Também com esse objectivo, foram enviadas tropas para o país».

Em 28 de Novembro de 2006, o parlamento ucraniano condenou a tragédia da fome de 1932-1933 e considerou-a um genocídio; e, em 22 de Novembro de 2008, foi inaugurado o monumento Vela da Memória, em homenagem às vítimas. Apesar do bloqueio de informações e investigações, durante meio século, com o desmantelamento progressivo da cortina de ferro da memória [Emmanuel Droit], o Holodomor foi deixando de ser ignorado da memória colectiva. Na verdade, sem um profundo conhecimento da Grande Fome é simplesmente impossível compreender o século XX europeu [Andrea Graziosi]. Neste sentido, embora grande parte dos acontecimentos passados sejam esquecidos na História, é bem claro que no ensino não deve ser negligenciado o Holodomor.

Padre Manuel Mendes