PÃO DE VIDA

In memoriam - José Araújo - um dos primeiros gaiatos

O passamento e o além de todo o ser humano são acontecimentos certos, únicos e misteriosos, e que as ciências persistem em desvendar. Na noite escura da tristeza, «o azul é a escuridão que se tornou visível» [Paul Claudel]. O seu sentido cristão encontra-se na cruz e na Páscoa de Jesus. Pai Américo teve fé em Cristo vivo e desejou o Céu para os seus: «Eu quero os meus filhos no paraíso» [O Gaiato, n. 68, 5 Out. 1946, p. 4].

Numa manhãzinha de início de Outono seco, em que o astro da manhã ia iluminando o céu, ao acompanharmos alguns miúdos gaiteiros, numa estrada entre eucaliptais, com o Senhor da Serra no alto, a caminho de uma Escola rural, eis que o sr. Machado - gaiato antigo, em Coimbra - nos deu notícia da partida do sr. Araújo - gaiato da primeira hora e nosso amigo!

Servem estas notas simples para lembrar um pouco este gaiato dos primórdios, entre os três primeiros que Pai Américo acolheu na Casa de Repouso do Gaiato Pobre - a primeira Casa do Gaiato, em dia do Santíssimo Nome de Jesus. Vamos socorrer-nos evidentemente de fontes, do seu testemunho e de encontros nossos. Entre outros escritos sobre a fundação e o crescimento da Obra da Rua, este parágrafo introdutório descreve com afecto e beleza o primeiro dia da bola de neve, depois de Colónias de Férias. Eis:

«Foi no dia 7 de Janeiro do ano de Cristo Jesus de 1940. Da cidade de Coimbra, comigo, partiram 3 menores num carro ligeiro. Seguimos Estrada da Beira, até ao entroncamento da Lousã e dali metemos a caminho de Miranda do Corvo. Era noite. Choveu todo o santo caminho; chuva pesada e fria. O pequeno solar, berço da obra, tinha sido adornado com a indispensável mobília, tudo muito pobre, aonde Francisco de Assis diria bem. A mesa estava posta. A governanta tinha preparado a ceia. Sentámo-nos, eles mais eu. Eram três pequeninos mendigos das ruas de Coimbra. Pela primeira vez comeram de garfo, viram uma cama lavada, sentiram a presença de um amigo! Um sentiu-se mal e teve de sair da mesa. Era canja de galinha. Estimava tanto os meus hóspedes, que lhes mandei preparar o melhor. Afeito ao caixote do lixo, não suportou o manjar! Deu-me o aviso e eu tomei a primeira lição.» [O Gaiato, n. 180, 20 Jan. 1951, p. 1].

O primeiro livro de registos de rapazes da Casa do Gaiato de Miranda do Corvo [que transitou para o Memorial Padre Américo - Obra da Rua, em Paço de Sousa], da pena de Pai Américo, reza assim, na sua primeira página:

«N.º 1 - Mário Diniz de Carvalho, de 11 anos de idade, filho de António Carvalho e de Albertina Diniz Coelho, natural de Coimbra e residente na Rua Dr. João Jacinto, n.º 28, da freguesia da Sé Nova.

N.º 2 - José Araújo Pereira, de 9 anos de idade, filho de Aristides Pereira e de Maria do Carmo Pereira, natural de Coimbra e residente na Rua Direita, n.º 70-1.º, da freguesia de Santa Cruz.

N.º 3 - Aristides Araújo Pereira, de 8 anos de idade, filho de Aristides Pereira e de Maria do Carmo Pereira, natural de Coimbra e residente na Rua Direita, n.º 70-1º, da freguesia de Santa Cruz.».

Na celebração das Bodas de Prata da Obra da Rua, na Casa do Gaiato de Miranda do Corvo, a 7 de Janeiro de 1965, os três primeiros gaiatos [os irmãos Aristides e José, e Mário] deram os seus testemunhos e ficaram registados para memória futura. Segue-se a transcrição das palavras sentidas de José Araújo:

«Foi naquela tarde cinzenta, fria e chuvosa do dia 7 de Janeiro de 1940, que esta santa e humilde Casa foi invadida por 3 corpos franzinos e com falta de carinho e conforto.

25 anos depois! Que saudades sinto em mim desse tempo, que para nós tudo o que víamos era um sonho.

Que saudades do tempo em que Pai Américo brincava connosco, cantando e acarinhando-nos por toda esta Quinta.

Que saudades dessa mesa sempre tão farta e cheia.

Talvez não acreditem, mas até dos castigos por ele aplicados eu sinto saudades. Quem dera que eu pudesse hoje castigar minhas filhas pelo mesmo processo que ele nos castigava.

Pai Américo... Homem que tanto sofreu, que tanto frio passou, que tantos dissabores recebeu; Homem que tanto passou mas, com a Divina Graça de Deus tudo venceu e a sua Obra, que ele deixou incompleta, foi um grande passo para bem da humanidade.

Gaiatos colegas e amigos.

Recordo com saudade uma das muitas frases ditas por Pai Américo:« Não há rapazes maus».

Sim, esta frase não foi dita pela primeira vez no filme que quase todo o mundo conhece. Esta frase foi dita aqui nesta Casa quando um dia vieram fazer queixa de mim e de outro gaiato. Dizia o queixoso que os rapazes desta Casa eram mal-educados e maus.

Mas Pai Américo com essa frase tapou a boca a muitos.

Quantas obrigações não devemos nós ao nosso Pai Américo! Quantas obrigações não lhe devem os nossos pais! Nem talvez esses lhe saibam dar o valor. Mas quem é pai de 5 crianças como eu sou, quem tanta fome passou e que já viu seus filhos passar, então esses talvez saibam compreender o significado desta Obra.

25 anos depois, voltar a esta Casa é para mim uma alegria que só eu a posso descrever. Vir aqui recordar os melhores momentos da minha vida só eu posso saber o valor.

E a terminar esta minhas palavras, eu peço Senhor Padre Horácio que dê a esta Obra o melhor do seu esforço para o engrandecimento desta Casa que eu considero para sempre a minha Casa.» [O Gaiato, n. 544, 16 Jan. 1965, p. 3-4].

]

Em 19 de Setembro de 2009, na inauguração de um busto de Pai Américo, na Avenida Dr. Dias da Silva, em Coimbra, perto dos franciscanos, com a presença da família da Obra da Rua, de amigos, autoridades civis e do sr. Bispo de Coimbra, D. Albino Cleto, também José Araújo deu o seu testemunho presencial, concluindo: «Obrigado, Pai Américo!» [O Gaiato, n. 1711, 10 Out., p. 3]. Nas comemorações dos 75 anos da Casa do Gaiato de Miranda do Corvo, em 10 de Janeiro de 2015, José Araújo, muito emocionado, disse: Foi Pai Américo que nesta Casa me deu o sabor de uma cama decente e me matou a fome!

Conhecemos a casa humilde do sr. Araújo, em Carapinheira da Serra, da freguesia de S. Paulo de Frades, e fomos ao seu encontro quando era necessário e possível. Depois, viúvo da Sra. D. Rosália Fernanda dos Santos Veiga, teve de se recolher a um Lar, em Coimbra. Dada a sua fragilidade, não pôde vir comemorar os 80 anos da sua Casa do Gaiato. Antes, a 2 de Janeiro de 2020, visitámo-lo com alguns rapazes - Marcelino e Norberto. Depois, surgiu a malfadada pandemia de covid-19.

José Araújo Pereira veio a falecer a 20 de Setembro, com 91 anos, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, da freguesia de Santo António dos Olivais, [vd. livro de registos de óbitos da Paróquia de S. José - Coimbra, assento n.º 143 - 2022]. No dia 23 de Setembro, quinta-feira, pelas 14 h 30, celebrámos a Missa de corpo presente na igreja paroquial de S. José, em Coimbra, especialmente com os seus familiares - filhos e netos. Foi pai de uma prole de oito, de quem nos aproximámos nestes momentos dolorosos e aos quais recomendámos para continuarem ligados a esta grande Família de Pai Américo - a Obra da Rua. Quando as sementes são lançadas em boa terra, germinam, crescem bem e dão espigas abundantes, pelo que é tamanha a alegria do Semeador! O sr. Araújo será recordado sempre como um pioneiro humilde e grato, com o seu irmão Aristides. Sendo chamado à casa do Pai celeste, pedimos a Deus que, tendo adormecido na esperança da ressurreição, se acenda outra luz no Céu!

Padre Manuel Mendes